Morreu neste domingo, dia 19, o historiador e musicólogo Régis Duprat. Ele estava com 91 anos. Duprat foi um dos principais pensadores da música brasileira, envolvendo-se tanto com a defesa da nova criação quanto com o trabalho de resgate de obras e autores do período colonial.
Régis Duprat estudou viola com Johanes Oesner e contraponto e composição com Olivier Toni e Claudio Santoro. Como instrumentista, teve atuação marcante nos anos 1950 e 1960 em diversos grupos brasileiros, sejam eles de câmara ou sinfônicos. Ao mesmo tempo, investia em uma formação multidisciplinar. Estudou História na Universidade de São Paulo, tendo mestres como Sérgio Buarque de Holanda; na USP, também foi aluno de sociologia de Florestan Fernandes e de antropologia de Egon Shaden. Especializou-se em Estética com Gilda de Melo e Souza. E, em Paris, estudou com o musicólogo Jacques Chailley e trabalhou com o historiador Fernand Braudel.
A formação múltipla, ele contou em entrevista de 2010 à Revista Brasileira de Música, sempre permitiu que cada área se comunicasse com a outra. “Seguramente, não só o instrumentista e intérprete garantiu uma visão endógena da partitura, mas também o conhecimento in loco do repertório solista, camerístico, orquestral e popular. Usufrui também o estudioso inveterado de Harmonia, Contraponto e Análise, que podia projetar na prática da audição cotidiana os problemas gerais da linguagem musical. Igualmente o restaurador e editor que se valeu dessa experiência para tratar com objetividade, economia e praticidade as revisões de partituras de 200 anos atrás.”
Em 1963, Duprat foi um dos signatários do “Manifesto Música Nova”, defendendo o “compromisso total com o mundo contemporâneo”. “A vivência das vanguardas, a pertença a um grupo ativíssimo em torno da Orquestra de Câmara de São Paulo que executava aquele repertório, integraram-me cedo na música contemporânea da época. Além disso, o contato de amizade estreita com os poetas concretistas: Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari, José Lino Grünewald completavam o círculo. Não foi outra a razão do Manifesto ser publicado na Revista Invenção, dos poetas concretos, sintonizados com as nossas posturas na música e nós com eles. O mesmo número 3 da revista publicou também poemas concretos meus e reportagens sobre eventos musicais da música contemporânea que fiz de Paris, onde eu residia quando da publicação do Manifesto”, contou na mesma entrevista citada acima.
Em artigo assinado com a professora Maria Alice Volpe, no livro Music and Dictatorship in Europe and Latin America [Música e ditadura na Europa e na América Latina], Duprat também relembrou o sentido da publicação do manifesto:
“O Manifesto de 1963 não deve ser interpretado como simples proposta de renovação das linguagens e das técnicas. O Manifesto propunha um re-exame do próprio conceito de fruição estética, questionando a leitura esteticista e prognosticando uma presença maior do homem, com seus problemas atuais na obra musical, ou seja, uma recuperação do caráter ontológico da arte, contra o sentimentalismo nacionalista e o egocentrismo personalista do artista-músico, impregnado de resíduos românticos. Para o Manifesto, o engajamento no mundo moderno envolvia o compromisso total com o mundo contemporâneo, que não se resumia na incorporação do serialismo geral, do pós-serialismo e/ou dos processos eletroacústicos. Implicava também na assimilação do concretismo anti-idealista, na superação da arcaica oposição conteúdo versus forma, deglutição dos construtivismos, reavaliação positiva dos recursos informatizados e comunicacionais, uma visão ampliada da psicofisiologia da percepção, compatibilidade com as conquistas do homem como conhecimento do mundo, integrando criativamente o probabilismo e o aleatório”, escreveu.
Também em 1963, Duprat participou da criação do Departamento de Música da Universidade de Brasília, idealizada pelo compositor Claudio Santoro. O projeto marcou época pelas propostas que Darcy Ribeiro, criador do Plano Orientador da UnB, colocava, resumidas na crença de que “um sistema de educação superior deveria buscar formar cidadãos capazes de estabelecer um plano de desenvolvimento para o país”, à luz do espírito democrático, da liberdade de pensamento e da necessidade de progresso social.
Na atividade pedagógica, Duprat também atuaria em outras frentes ao longo de sua vida. Foi cofundador da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música – Anppom, além de ter atuado como professor da Unesp e da USP. À frente da Anppom, defendeu a importância da transdisciplinaridade, como afirmou em depoimento de 2010.
“A ausência de transdisciplinaridade na nossa área é afeta às próprias subáreas: práticas interpretativas, composição, educação musical e musicologia. Veja-se que até entre os instrumentistas reina a diferença instrumental; e até entre as musicologias, com sociedades distintas, diferentes e... antagônicas. Não parece uma luta inglória? O que precisa mudar são o comportamento e a mentalidade de ninho de passarinhos que reina entre nós. Urge uma cruzada de reeducação e conscientização dessas urgências.”
Garimpo musical
Em 1958, Duprat descobriu o então manuscrito musical mais antigo do país, o Recitativo e Aria de compositor anônimo baiano, escrito em 1759. Duas décadas mais tarde, em 1980, seu trabalho de pesquisa revelou o manuscrito musical de Mogi das Cruzes, datado de 1730. Duprat foi também responsável pelo resgate da obra de André da Silva Gomes, mestre-de-capela da Matriz e Sé de São Paulo. Dele, realizou o catálogo de obras, a edição de partituras e uma série de gravações marcantes. Também foi o coordenador da recuperação e catalogação da Coleção Francisco Curt Lange.
Sobre o trabalho com a obra de Silva Gomes, no Arquivo da Cúria Metropolitana, ele falou em depoimento à série Trajetórias da Academia Brasileira de Letras, da qual foi membro, em 11 de maio de 2000.
“Durante seis anos eu iria trabalhar naquele arquivo do casarão da Praça Clóvis Bevilacqua. (...) No casarão, ninguém tinha notícia nem acreditava que ali pudesse haver papeis de música. O acervo organizado funcionava no andar térreo e era pesquisado, sobretudo, por excelentes genealogistas, com quem muito aprendi, aliás, sobre a busca de fontes primárias; as reservas estavam no sótão, no topo de uma escadaria de 50 degraus que levavam a um patamar interior onde ficava a porta de entrada do arquivo em organização e restauro. Não sei que milagre preservou as folhas de Silva Gomes, que jaziam justamente nas prateleiras mais altas de um pé direito de cerca de quatro metros. Empilhado, o acervo podia formar 1,5 metro. Sua primeira morada após a descoberta foi um baú, onde depositávamos os manuscritos revelados pela busca. A quantidade de papeis e objetos era tão grande que o achado não se completou senão em vários meses. Meus trinta anos conheceram, então, a alegria de um menino. Eu sabia que tinha todo o futuro para me ocupar...”
Nos anos 1970, Duprat e seu irmão Rogério também empreenderam o trabalho de levantamento da música da região do Vale do Paraíba, no estado de São Paulo, ciente de que o desenvolvimento econômico havia levado a nascimento de núcleos urbanos onde “a música, tanto religiosa como profana, desempenhou um papel significativo no contexto sócio-cultural”.
“Fundamentalmente voltados para a identificação de manuscritos de música sacra, fomos atraídos pela frequente presença, no verso das partes vocais e instrumentais de música para banda, que passamos a sistematizar paralelamente à investigação principal, o que gerou a abordagem, pela primeira vez na história da música popular brasileira, de produtos instrumentais da segunda metade do século passado”, lembrou em 2000.
Publicações
Duprat escreveu mais de centena de artigos sobre suas descobertas, e é autor de livros como Garimpo Musical, de 1985, publicado pela editora Novas Metas, no qual reúne escritos a respeito de seu trabalho como pesquisador. E também deixa textos nos quais refletiu sobre história, memória e o sentido do resgate do passado. Caso de Música, heteronomia e metalinguagem: razão, imaginação, história e memória, publicado em 2016 na Revista Brasileira de Música. Nele, escreve:
“A História é uma ciência que se organiza em função da recuperação do passado. A rigor o passado poderia ser conhecido factualmente, sem nenhuma interpretação, sem mediação hermenêutica. Esta, porém, está implícita na própria identificação e valorização da documentação, que inapelavelmente se apresenta com carga semântica e constitui, como memória, uma ponte intergeracional. E mais do que isso, a memória se constitui justamente na potencialidade ou função psíquica que permite ao Homem produzir sentido através da ação de reconhecimento e identificação semântica, conferir signos identificáveis às coisas e por isso ter uma história. Agostinho já discernira isso quando, nas suas páginas citadas, afirma que “os pássaros também têm memória. De outro modo não saberiam regressar a suas tocas e a seus ninhos, nem fariam aquilo a que estão habituados. Sem a memória não poderiam construir hábito nenhum”. Assim também o Homem. [...]”
“Como função psíquica que reproduz um estado de consciência passado, a Memória é um ato criador, criativo, participante. E mais: a Memória é sempre representativa e interpretativa; é um ato de criação, de opção do presente e não do passado. A História factual, assim, não existe; o que existe é um nível interpretativo factual. Vale lembrar uma frase antológica de Paolo Portoghese (Depois da arquitetura moderna, 1982): “Fazemo-nos prisioneiros do passado pela perda da memória, não por seu culto”. Como diz Sartre (O existencialismo é um humanismo, 1946): “O Homem não é senão o seu projeto, só existe na medida em que se realiza; (ele) é o conjunto de seus atos”. E seus atos, completemos, são a sua História, e a sua História é a sua Memória.
![Regis Duprat [Reprodução]](/sites/default/files/inline-images/DUPRAT.jpg)
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