Os 200 anos da independência do Brasil têm sido celebrados em concertos que evocam a música feita no país no início do século XIX, incluindo as composições de D. Pedro I – recentemente, o projeto Musica Brasilis anunciou que está editando toda a produção do imperador, ao lado de outras três mil partituras de autores nacionais.
Neste final de semana, dois programas vão se dedicar à música do tempo da independência, um no Rio de Janeiro, no Palácio São Clemente, comandado por Rosana Lanzelotte; e outro em São Paulo, no Theatro São Pedro, com regência de Ricardo Kanji.
Do pianoforte, Lanzelotte lidera o grupo que vai apresentar o espetáculo cênico-musical A Música da Independência, no dia 7. Nele, obras serão interpretadas por um grupo formado ainda pelo violinista Tomaz Soares; também participa o ator Adam Lee, que vive no palco D. Pedro I, dialogando com as peças musicais do programa.
Em São Paulo, Kanji, grande especialista na história da música brasileira, estará à frente da Orquestra do Theatro São Pedro e do Coral Jovem do Estado de São Paulo, grupo ligado à Santa Marcelina Cultura. Os concertos acontecem nos dias 7 e 8.
Em ambos os casos, as apresentações trazem obras de quatro figuras-chave do período: Padre José Maurício Nunes Garcia, Marcos Portugal, Sigismund Neukomm e do próprio D. Pedro I. Por meio da criação desses compositores, é possível recriar a paisagem sonora da época. Conheça um pouco mais sobre seus trabalhos.
Padre José Maurício Nunes Garcia
José Maurício Nunes Garcia (1767-1830) nasceu no Rio de Janeiro. Começou a aprender música aos 6 anos de idade, tornando-se compositor, cravista e organista. Aos 17 anos, foi um dos fundadores da irmandade de Santa Cecília, confraria de professores de música que marcaria a vida musical da época. Ordenou-se padre aos 25 anos: a atividade musical estava bastante associada às funções religiosas – e a batina era uma forma de conferir respeitabilidade e colocação social para o filho de uma escrava.
Pouco após a chegada da família real portuguesa ao Brasil, em 1808, D. João VI o nomeia mestre de música da Capela Real. O novo posto permite ao compositor escrever um grande número de obras e vê-las interpretadas. É, no entanto, também um período difícil para Padre José Maurício. De um lado, o excesso de trabalho. De outro, a difícil relação com os músicos que vieram ao Brasil com a corte na fuga de Portugal, onde integravam a Capela Real de Lisboa. Suas qualidades como músico são atacadas, assim como “seu defeito físico visível”, com que os músicos se referiam a sua cor.
Com o tempo, sua situação financeira torna-se cada vez pior. Ele não apenas não recebe por suas composições ou pelo trabalho como professor, como também sofre com a falta de ressarcimento de verbas que deveria ser feito pelo Senado da Câmara: na época, em eventos fora do calendário litúrgico, o mestre de capela devia adiantar o valor a ser pago aos músicos, contando em seguida com o ressarcimento do estado. Com isso, Padre José Maurício Nunes Garcia chega ao final da vida na miséria.
Marcos Portugal
O compositor português Marcos Portugal (1762-1830) viveu grande fama em Portugal dedicando-se à ópera e à música para teatro, com obras encenadas constantemente em Lisboa, mas também em cidades como Paris e São Petersburgo. Em 1811, D. João VI ordenou sua vinda para o Brasil. No país, suas óperas também foram encenadas com frequência no Teatro Real de São João, inaugurado no Rio de Janeiro em 1813.
Seu trabalho no Brasil não se limitou, porém, ao teatro. Ele foi nomeado Mestre de Suas Altezas Reais e com o tempo ficou responsável por escrever música para algumas das principais ocasiões religiosas ou políticas, a pedido da corte. O posto como professor dos herdeiros de D. João VI, assim como o de Mestre do Seminário e Compositor da Patriarcal lhe rendiam bons salários mensais, dando a ele vida confortável, ao contrário do que acontecia com seu contemporâneo Padre José Maurício, que tinha o posto de mestre da capela real. Por conta disso, a história falaria de uma rivalidade entre ambos.
Para a musicologia brasileira, “o autor de Lo Spazzacamino era o personagem ideal para a criação de uma versão tropical do mito de Mozart e Salieri, em que um músico invejoso (e de estética italiana) usava de intrigas para manobrar e deslocar seu rival, mais talentoso”, como escreve Irineu Franco Perpetuo em História concisa da música clássica brasileira (Alameda). “O fato é que, trazendo a tiracolo o irmão Simão (1774-1842?), também músico, e, mais tarde, mestre da Capela Real, e utilizando-se ou não de intrigas, Portogallo [Portugal] efetivamente assumiu o papel principal nas atividades musicais da corte, relegando a segundo plano o colega nativo.” E, em consequência disso, a atividade de José Maurício como compositor sofreu grande redução.
Os dois morreram no mesmo ano, em 1830, separados por alguns meses. Doente, Portugal não retornou com a família real para a Europa, em 1821. E, com a Independência, foi aos poucos sendo colocado de lado, sem os luxos e riquezas experimentados nos anos imediatos após sua chegada ao Brasil.
Sigismund Neukomm
Nascido em Salzburgo, na Áustria, onde foi aluno de Haydn, Sigismund Neukomm (1778-1858) veio ao Brasil em 1816 na comitiva do Duque de Luxemburgo, embaixador extraordinário do rei francês Luís XVIII, na mesma época em que chegava ao país a Missão Francesa, da qual faziam parte artistas como os pintores Jean Baptise Debret e Nicolas-Antoine Taunay e o escultor Marc Ferrez.
Foi professor de música de D. Pedro I e grande admirador do trabalho de José Maurício – diversos autores creditam ao contato entre eles uma maior influência da música austríaca na obra do compositor brasileiro. Neukomm escreveu diversas sinfonias enquanto viveu no Rio de Janeiro, inaugurando o gênero no país – a atenção à criação sinfônica provavelmente esteve ligada não apenas à sua formação germânica, mas também ao fato de que logo lhe ficou claro que, em meio à disputa entre Marcos Portugal e José Maurício na capela real, outros caminhos lhe seriam mais interessantes.
De acordo com levantamento feito pelo projeto Musica Brasilis, Neukomm escreveu setenta obras no Brasil: além das sinfonias, peças para pianoforte e para grupos de câmara. Também estreou no Rio de Janeiro um final para o Réquiem deixado incompleto por Mozart. Credita-se a ele também um interesse na mistura do popular com o clássico, compondo modinhas que mais tarde seriam editadas em Paris e caprichos a partir de lundus, como O Amor Brazileiro, dedicado a uma aluna. Neukomm voltou à Europa em 1821, estabelecendo-se em Paris.
D. Pedro I
Aluno de Marcos Portugal e de Neukomm, D. Pedro I escreveu cerca de vinte obras hoje ainda conhecidas. Em entrevista recente, Rosana Lanzelotte conta, porém, que é bem possível que haja outras peças perdidas. “Neukomm escreveu uma peça chamada Fantasia sobre Valsas do Imperador, então podemos imaginar que as valsas foram compostas, mas não foram encontradas ainda as partituras”, explica.
Entre suas peças, destacam-se uma Missa dedicada ao papa Leão XII, o Responsório para São Pedro de Alcântara, a Antífona de Nossa Senhora, o Credo do Imperador (parte da Missa de Nossa Senhora do Carmo) e o Hino de Ação de Graças.
“Ainda que seja um aspecto pouco conhecido de sua vida, ele compôs peças de qualidade louvável”, afirma Lanzelotte. “E usava a música como instrumento político. A missa para o papa Leão XII é símbolo disso. Ela foi escrita e enviada à Europa como tentativa de estreitar relações com o Vaticano, algo importante para o Brasil que acabara de passar pelo processo de independência.”
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![Padre José Maurício, Marcos Portugal, Sigismund Neukomm e D. Pedro I [Reprodução]](/sites/default/files/inline-images/independencia.jpg)
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