Dirigido por Luiz Fernando Malheiro, espetáculo tem encenação do colombiano Pedro Salazar
MANAUS - A linguagem do gênero da ópera – como de resto toda a música ocidental – é de uma multiplicidade e riqueza impressionantes. Começa ali no século XVII, com a escrita contrapontística do barroco, passa pela depuração do classicismo para alcançar os grandes volumes sonoros do romantismo tardio. Quando chegamos à modernidade, as formas impressionistas e expressionistas, cada uma com suas próprias características.
A ópera Peter Grimes, de Benjamin Britten (1913-1976), foi escrita entre 1942 e 1945 e é, ainda que claramente decorrente de todo esse rico manancial histórico, de uma invenção absolutamente original. A linguagem tonal tem trechos instrumentais e vocais fragmentados, linhas melódicas líricas e de vez em quando surpreendentes uníssonos ou trechos a cappella (apenas os cantores cantando), tudo em um grande e sólido arcabouço estrutural – de vez em quando lembra música para cinema. E é incrível a carga dramática que Britten imprime à música – coisa de gênio!
Peter Grimes, com suas passagens virtuosísticas, é um imenso desafio para qualquer orquestra do mundo. E a Amazonas Filarmônica, na estreia do título na 24ª edição do Festival Amazonas de Ópera (sexta-feira dia 20 de maio), demonstrou novamente sua vocação lírica trazendo a música com toda a sua riqueza. Conduzida pelo maestro Luiz Fernando Malheiro, a interpretação orgânica e teatral explorou com sucesso o potencial dramático da partitura.
A ópera é baseada em um poema de George Crabbe (1754-1832) e conta a história de um pescador da costa leste inglesa. O libreto é de Montagu Slater, com participação de Britten e de seu parceiro Peter Pears, tenor que estreou a obra em 1945. No texto da ópera, o pescador ganha uma personalidade mais complexa do que no poema original – por um lado desajustado, rude e violento e acusado pela morte de seu aprendiz, por outro, de índole visionária e com desejos sinceros de se socializar –, e é rechaçado pelo moralismo e conservadorismo da hipócrita comunidade local. Na história, não há mocinhos ou bandidos, e sim uma teia viciada e preconceituosa de relações interpessoais que leva a algumas tragédias. “O conflito de Peter Grimes é interno e nisso nos reconhecemos, e por isso temos empatia por ele. Em sua percepção alucinada ele nos lembra os personagens mais visionários de Shakespeare e também Dom Quixote”, afirma o direto cênico colombiano Pedro Salazar no texto do programa.
Potencializando os temas que o título levanta – discriminação social, opressão pela coletividade, hipocrisia, trabalho infantil e outros –, Pedro Salazar transportou a ação da Inglaterra a uma vila pesqueira da América Latina de nossos dias, trazendo o drama para mais perto de nós. A encenação é despretensiosa e bonita, com figurinos adequados e sugestiva iluminação. Os cenários, simples e inteligentes, serviram de ótimo suporte para o desenrolar da ação e transmitiram a miséria e as condições sociais precárias da vila de pescadores. Soluções cênicas bem concebidas proporcionaram boa fluência ao espetáculo.
O destaque vocal da noite foi Fernando Portari, que fez o papel principal. Portari, como sabemos, é um artista versátil, de natural talento cênico e uma poderosa, bela e maleável voz de tenor. A sua interpretação pendeu para o lado da perturbação mental e da violência de Grimes, e Portari saiu-se muito bem. Desde a primeira cena ao trágico epílogo, Portari construiu um personagem sempre no limite da tensão, com grande entrega.
Foram bem também a soprano Daniella Carvalho, que fez a viúva Ellen Orford (com bonita e clara voz em ótimo contraponto ao extremado Grimes), e o barítono Homero Velho, que fez o capitão Balstrode.
Completaram o elenco de forma competente Thalita Azevedo, Maria Sole Gallevi e Dhijana Nobre (muito bem e equilibradas como as sobrinhas), Daniel Umbelino, Anderson Barbosa, Carla Rizzi, Wilken Siveira, Vinicius Atique, Emanuel Conde, Rhuann Gabriel e Robson Ney. O coro, que tem importante papel na estrutura dramática da ópera, também foi bem com uma atuação muito convincente (a direção do Coral Amazonas é de Otávio Simões).
Esta produção de Peter Grimes de Britten sem dúvida é mais um marco na história do Festival Amazonas de Ópera, seja pelo título em si – que não é encenado no Brasil desde a década de 1980* –, seja por seu resultado artístico.
A 24ª edição do Festival Amazonas de Ópera teve ainda Il tabarro de Puccini (em parceria com o Theatro da Paz de Belém), O caixeiro da taverna de Guilherme Bernstein (em parceria com a Secult do estado do Espírito Santo), O menino maluquinho de Ernani Aguiar e, na semana que vem, apresenta Il trovatore de Verdi em forma de concerto.
Nesse período de um quarto de século, atravessando várias gestões políticas, o Festival Amazonas de Ópera construiu uma engrenagem cultural em Manaus que inclui uma funcional Central Técnica de Produção, uma escola de música e ofícios e diversos organismos artísticos (o programa dessa 24ª edição do Festival Amazonas de Ópera contempla até um concerto da Orquestra Barroca do Amazonas!).
É a ópera e a música contribuindo para a difusão e formação cultural e impulsionando o ecossistema econômico da região.
[Nelson Rubens Kunze viajou a Manaus e assistiu à ópera Peter Grimes a convite do Festival Amazonas de Ópera.]
* Texto editado em 25/05/2022 - Diferentemente do que estava escrito, a ópera Peter Grimes foi encenada em 1982 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
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