‘Peter Grimes’ de Britten é novo marco na história do Festival Amazonas de Ópera

por Nelson Rubens Kunze 22/05/2022

Dirigido por Luiz Fernando Malheiro, espetáculo tem encenação do colombiano Pedro Salazar

MANAUS - A linguagem do gênero da ópera – como de resto toda a música ocidental – é de uma multiplicidade e riqueza impressionantes. Começa ali no século XVII, com a escrita contrapontística do barroco, passa pela depuração do classicismo para alcançar os grandes volumes sonoros do romantismo tardio. Quando chegamos à modernidade, as formas impressionistas e expressionistas, cada uma com suas próprias características. 

A ópera Peter Grimes, de Benjamin Britten (1913-1976), foi escrita entre 1942 e 1945 e é, ainda que claramente decorrente de todo esse rico manancial histórico, de uma invenção absolutamente original. A linguagem tonal tem trechos instrumentais e vocais fragmentados, linhas melódicas líricas e de vez em quando surpreendentes uníssonos ou trechos a cappella (apenas os cantores cantando), tudo em um grande e sólido arcabouço estrutural – de vez em quando lembra música para cinema. E é incrível a carga dramática que Britten imprime à música – coisa de gênio!

Peter Grimes, com suas passagens virtuosísticas, é um imenso desafio para qualquer orquestra do mundo. E a Amazonas Filarmônica, na estreia do título na 24ª edição do Festival Amazonas de Ópera (sexta-feira dia 20 de maio), demonstrou novamente sua vocação lírica trazendo a música com toda a sua riqueza. Conduzida pelo maestro Luiz Fernando Malheiro, a interpretação orgânica e teatral explorou com sucesso o potencial dramático da partitura.

A ópera é baseada em um poema de George Crabbe (1754-1832) e conta a história de um pescador da costa leste inglesa. O libreto é de Montagu Slater, com participação de Britten e de seu parceiro Peter Pears, tenor que estreou a obra em 1945. No texto da ópera, o pescador ganha uma personalidade mais complexa do que no poema original – por um lado desajustado, rude e violento e acusado pela morte de seu aprendiz, por outro, de índole visionária e com desejos sinceros de se socializar –, e é rechaçado pelo moralismo e conservadorismo da hipócrita comunidade local. Na história, não há mocinhos ou bandidos, e sim uma teia viciada e preconceituosa de relações interpessoais que leva a algumas tragédias. “O conflito de Peter Grimes é interno e nisso nos reconhecemos, e por isso temos empatia por ele. Em sua percepção alucinada ele nos lembra os personagens mais visionários de Shakespeare e também Dom Quixote”, afirma o direto cênico colombiano Pedro Salazar no texto do programa.

Potencializando os temas que o título levanta – discriminação social, opressão pela coletividade, hipocrisia, trabalho infantil e outros –, Pedro Salazar transportou a ação da Inglaterra a uma vila pesqueira da América Latina de nossos dias, trazendo o drama para mais perto de nós. A encenação é despretensiosa e bonita, com figurinos adequados e sugestiva iluminação. Os cenários, simples e inteligentes, serviram de ótimo suporte para o desenrolar da ação e transmitiram a miséria e as condições sociais precárias da vila de pescadores. Soluções cênicas bem concebidas proporcionaram boa fluência ao espetáculo.

O destaque vocal da noite foi Fernando Portari, que fez o papel principal. Portari, como sabemos, é um artista versátil, de natural talento cênico e uma poderosa, bela e maleável voz de tenor. A sua interpretação pendeu para o lado da perturbação mental e da violência de Grimes, e Portari saiu-se muito bem. Desde a primeira cena ao trágico epílogo, Portari construiu um personagem sempre no limite da tensão, com grande entrega.

Foram bem também a soprano Daniella Carvalho, que fez a viúva Ellen Orford (com bonita e clara voz em ótimo contraponto ao extremado Grimes), e o barítono Homero Velho, que fez o capitão Balstrode. 

Completaram o elenco de forma competente Thalita Azevedo, Maria Sole Gallevi e Dhijana Nobre (muito bem e equilibradas como as sobrinhas), Daniel Umbelino, Anderson Barbosa, Carla Rizzi, Wilken Siveira, Vinicius Atique, Emanuel Conde, Rhuann Gabriel e Robson Ney. O coro, que tem importante papel na estrutura dramática da ópera, também foi bem com uma atuação muito convincente (a direção do Coral Amazonas é de Otávio Simões).

Esta produção de Peter Grimes de Britten sem dúvida é mais um marco na história do Festival Amazonas de Ópera, seja pelo título em si – que não é encenado no Brasil desde a década de 1980* –, seja por seu resultado artístico. 

A 24ª edição do Festival Amazonas de Ópera teve ainda Il tabarro de Puccini (em parceria com o Theatro da Paz de Belém), O caixeiro da taverna de Guilherme Bernstein (em parceria com a Secult do estado do Espírito Santo), O menino maluquinho de Ernani Aguiar e, na semana que vem, apresenta Il trovatore de Verdi em forma de concerto.

Nesse período de um quarto de século, atravessando várias gestões políticas, o Festival Amazonas de Ópera construiu uma engrenagem cultural em Manaus que inclui uma funcional Central Técnica de Produção, uma escola de música e ofícios e diversos organismos artísticos (o programa dessa 24ª edição do Festival Amazonas de Ópera contempla até um concerto da Orquestra Barroca do Amazonas!).

É a ópera e a música contribuindo para a difusão e formação cultural e impulsionando o ecossistema econômico da região. 
 

[Nelson Rubens Kunze viajou a Manaus e assistiu à ópera Peter Grimes a convite do Festival Amazonas de Ópera.]

* Texto editado em 25/05/2022 - Diferentemente do que estava escrito, a ópera Peter Grimes foi encenada em 1982 no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

Cena de ‘Peter Grimes’ do Festival Amazonas de Ópera (reprodução Facebook)
Cena de ‘Peter Grimes’ do Festival Amazonas de Ópera (reprodução Facebook)

 

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