‘Prism’: no tempo da angústia

por Olívia Fraga 11/09/2019

Prism não é ópera em que se sai com uma melodia na cabeça. Deixa-se o Theatro Municipal com um pulso, a percussão dos últimos compassos, a visão da cantora Anna Schubert (Bibi) na ribalta, fragilizada, vestindo uma camiseta. Nem tudo é explicado e, ainda assim, o trabalho da compositora americana Ellen Reid, incomum e incômodo, permanece com o ouvinte muito além da música. 

Como é impossível que a arte não seja trespassada pela realidade, Prism trata de esgarçar o limite das coisas e articular orquestra e cantores longe da tradição. Lança mão de baterias, trechos gravados de música eletrônica, ostinatos, música abstrata. As árias duram pouco e se concentram no começo. São fragmentos de apoio entre a ação de duas cantoras no palco – uma quer esquecer e dormir; a outra quer lembrar e permanecer acordada.   

A dramaturgia de Prism se sobrepõe à condução musical tradicional; é preciso não desgrudar os olhos de Lumee, a mãe de Bibi que, com remédio (veneno?) e ameaças, a impede de sair do Santuário, um cômodo onde se reza para que o Amarelo nos livre do Azul, uma luz que se vislumbra por baixo da porta e que se insinua como a memória do mundo exterior. Quando rejeita o remédio-calmante que a mãe lhe dá, ela é capaz de andar. A cenografia de Adam Rigg, tomada pelas cores que disputam a mente de uma fragilizada Bibi, é pura angústia e claustrofobia. 

Em um primeiro ato tenso e onírico, Bibi tenta alcançar a porta várias vezes, arrastando-se no chão e tentando erguer-se. A imobilidade da personagem – notável o esforço físico da soprano, que canta pedaços de sua dor enquanto tenta ficar de pé – é a síntese do tema de Prism. A dor existe, é física e psicológica, e Bibi quer sair para o Azul para poder entender. 

Cena da ópera ‘Prism’, de Ellen Reid, apresentada no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação]
Cena da ópera Prism, de Ellen Reid, apresentada no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação]

A mulher que sofre violência sexual sai da experiência com o quê na cabeça? Fragmentos, repetições, a memória dos sentidos – cores, cheiros, toques. É no segundo ato que se reencena o trauma, com os músicos tocando em cima do palco, à direita, na penumbra. A economia de recursos da dramaturgia, ancorada em música ainda mais fragmentada e por um coral de vozes potente que conduz a memória de Bibi e comenta a trama (Chroma), revela a força da obra de Ellen Reid. 

A oração-mantra entoada pelas duas personagens era uma frase cifrada, que, na origem, carrega o papel da mãe para um outro lugar – superprotetora no ambiente de sonho, ela foi incapaz de estar por perto para proteger a filha na vida real. Culpa e trauma. A memória, representada por um Cubo Laranja no centro do palco, leva Bibi a uma danceteria. A figura que oprimia e queria esquecimento, fumando em cena, pragueja contra a filha, mas talvez seja tão vítima quanto. 

Depois de revelado o episódio da agressão sexual, a ação parece correr em direção ao seu desfecho. A mezzo soprano Rebecca Jo Loeb, que encarna Lumee, explica em uma ária curta o que lembra ter acontecido com Bibi. E, em um terceiro ato ainda mais pesado musicalmente, a cenografia revela as cores reais do Santuário, enquanto Bibi caminha para a porta e escolhe o Azul. 
 
Impossível não pensar que, feita por mulheres quase de ponta a ponta (composição, libreto, cantoras), Prism nasceu de um expurgo de sua autora. Ela também foi vítima de agressão. Na forma e no conteúdo, a ópera de Reid pouco rende tributo ao cânone, e nisso reside sua especialidade.

A ópera não tratou muito bem as mulheres. Retratou-nos muito, morremos demais em cena; somos tema de várias e já fomos amorosas, sedutoras, ingênuas, traiçoeiras, vulgares, fofoqueiras, santas e prostitutas. Sob o olhar masculino, somos qualquer coisa, menos agentes pensantes. Uma ópera que termina com uma mulher destruída por dentro mas viva e caminhando é uma ópera necessária.

Vencedora do prêmio Pulitzer de música em 2019, Prism fez sua estreia internacional no palco do Theatro Municipal. Deve-se celebrar também a coragem do diretor musical e regente Roberto Minczuk de trazer a obra de Reid para o Municipal, afeito ao barulho dos tempos, ainda que hoje os tempos do mundo sejam duros para as artes e para as mulheres.

A ópera Prism, de Ellen Reid, segue em cartaz até o dia 14 no Theatro Municipal de São Paulo; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO.

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