Filantropia

por Nelson Rubens Kunze 15/12/2020

Mãos à obra para a elaboração de um marco legal para o fomento do investimento social privado, uma das grandes ferramentas para a construção de um futuro social e ambientalmente sustentável

Morreu na semana passada o banqueiro Joseph Safra, o homem mais rico do Brasil. Nascido no Líbano, mudou-se com a família para cá nos anos 1950. Em 1957, seu pai criou o Banco Safra. Como leio nos jornais, nesses pouco mais de 60 anos, por sua visão e habilidade empresarial, Joseph Safra amealhou uma fortuna estimada em US$ 23,2 bilhões (algo como R$ 120 bilhões).

É muito dinheiro. No jornal diz que ele era a 63ª pessoa mais rica do mundo. Fui fazer uma rápida pesquisa no google e descobri que Safra está “longe” de Jeff Bezos da Amazon (US$ 182 bi), Elon Musk da Tesla (US$ 136 bi), Bill Gates da Microsoft (US$ 128 bi) ou de Mark Zuckerberg do Facebook (US$ 102 bi).

Chamaram a atenção, também, na morte de Joseph Safra, para a sua relevante atividade filantrópica. “[Safra] dedicou-se a causas sociais, destacou-se com a comunidade judaica no Brasil. Contribuía para uma série de entidades sociais e cultivou especial apreço por construir e modernizar hospitais, creches, museus e templos religiosos. De gosto refinado, era um apaixonado pelas artes, às quais apoiava como reservado mecenas”, escreveu Luiz Carlos Trabuco Cappi, presidente do conselho de administração do Bradesco.

Na nossa área da música clássica e da ópera, tivemos alguns grandes e imprescindíveis mecenas. Um deles foi José Ermírio de Moraes Filho (Votorantim), patrocinador de séries de concertos e um dos dirigentes dos antigos Patronos do Theatro Municipal de São Paulo. Durante muitos anos, de meados dos anos 1990 até o início da década de 2010, as óperas e eventos líricos da casa eram promovidos pelos Patronos, uma entidade privada sem fins lucrativos. O irmão de José Ermírio, Antônio Ermírio de Moraes, também era grande filantropo, conhecido por seu trabalho no Hospital da Beneficência Portuguesa, além de ter tido forte engajamento no Instituto Baccarelli, de quem foi um dos primeiros incentivadores. 

Yale, Harvard, Stanford ou Cornell, que sempre são citadas entre as dez mais importantes universidades do planeta, são nomeadas pelos seus primeiros doadores

Mas creio que os exemplos históricos mais significativos vêm do Estados Unidos, onde vultuosas doações criaram instituições que se transformaram em algumas das principais universidades do mundo. Yale, Harvard, Stanford ou Cornell, que sempre são citadas entre as dez mais importantes universidades do planeta, são nomeadas pelos seus primeiros doadores. E não é só de antigamente. As universidades (ou museus, ou teatros ou orquestras sinfônicas) norte-americanas mantêm fundos patrimoniais bilionários que geram importante parcela de suas receitas operacionais. E esses fundos foram criados e são mantido por aportes do setor privado.

Temos no Brasil uma cultura mais ligada a uma tradição europeia, que tem o entendimento de que é o Estado, a quem pagamos os impostos, que deve suprir e manter universidades, centros de pesquisa ou teatros de ópera. Eu mesmo sou assim – quem lê os meus textos sabe da minha defesa intransigente da subvenção do Estado para a atividade da música clássica e da ópera no Brasil, por exemplo. Esse posicionamento, contudo, não turva a evidência de que cada um de nós, e também todo o mundo corporativo, carrega uma responsabilidade social com o meio em que vive. 

Filantropia existe há séculos e desde sempre vem associada à ideia da caridade. Se no curso da história grandes obras sociais foram erguidas por ações de caridade das classes sociais mais abastadas, como as Santas Casas, atualmente a compreensão da filantropia vai muito além disso. Hoje compreende-se a filantropia não apenas como solução para mitigar um sofrimento particular ou alguma carência pontual. O conceito da filantropia mudou para o do “investimento social privado”, que é mais abrangente, enxerga o contexto e procura interferir estruturalmente para a construção de um mundo social, econômica e ambientalmente mais justo e equilibrado. 

Cria-se um ecossistema público de caráter privado, ou seja, não estatal, com grande impacto na sociedade

Investimento social privado tem uma contraface, que é o assim chamado terceiro setor, que congrega as ONGs (organizações não-governamentais) e as entidades sem fins lucrativos, como fundações, associações e organizações sociais. E aí vem o melhor da história. Pois é nessa relação do investimento social e do terceiro setor que floresce o empreendedorismo e a participação da sociedade civil nas atividades de interesse público. Cria-se um ecossistema público de caráter privado, ou seja, não estatal, com grande impacto na sociedade. (Uma das grandes vantagens de um ambiente desses, é o de ser possível distanciar as atividades de interesse público, como por exemplo a manutenção de um teatro de ópera ou de uma orquestra sinfônica, do dia a dia das disputas político-partidárias...)

Acredito que a maioria das empresas brasileiras hoje tenha os seus programas de investimentos social privado. Talvez sejam tímidos, não sei avaliar. Mas é significativo que, segundo a Associação Brasileira de Captadores de Recursos, as doações em resposta à covid-19, por exemplo, já tenham alcançado cerca de R$ 6,5 bilhões.

Na área da cultura, o Banco Itaú Unibanco, que é patrocinador de algumas de nossas principais orquestras, foi a instituição privada que realizou o maior aporte financeiro por meio da Lei Rouanet, seguido pelo Bradesco (dados de 2019). Segundo o seu site, no ano passado o Banco Itaú Unibanco investiu cerca de R$ 250 milhões no setor cultural. Desse total, RS 127 milhões foram recursos próprios do banco (ou seja, sem utilização das leis de incentivo), dos quais cerca de R$ 100 milhões para as atividades do Instituto Itaú Cultural. Em 2019, somados todos os recursos para projetos culturais, educacionais, de esporte, saúde, mobilidade urbana e outros, o grupo Itaú Unibanco realizou um investimento social privado total de cerca de R$ 800 milhões.

Um dos adeptos da ideia do investimento social privado da pessoa física no Brasil é o bilionário Elie Horn, sócio fundador da Cyrela, que, com uma fortuna estimada de US$ 1 bilhão, se esforça em difundir por aqui o espírito de doação tão presente nos Estados Unidos (Horn já fez importantes aportes financeiros para o Instituto Baccarelli, por exemplo). Horn é o único brasileiro que participa do programa The Giving Pledge, criado por Bill Gates e Warren Buffet, que tem como objetivo incentivar bilionários a destinar ao menos metade de suas fortunas para a filantropia. No ano passado, Horn e outros empresários criaram o Movimento Bem Maior, que procura sensibilizar ricos para a cultura da doação. 

Já assisti a algumas palestras e acompanho o trabalho do Idis, Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social, uma das principais organizações em nosso país para o incentivo ao investimento social privado. Em seu site, o Idis informa que o World Giving Index (um ranking internacional de solidariedade) aponta um fortalecimento da cultura de doação, ainda que tenha sido registrada uma tendência de queda neste comportamento em alguns dos lugares mais ricos do mundo, como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Irlanda e Holanda. 

Se há no Brasil uma crescente conscientização da importância do investimento social privado, ainda nos falta uma legislação moderna e adequada

Se há no Brasil uma crescente conscientização da importância do investimento social privado, ainda nos falta uma legislação moderna e adequada, tanto do ponto de vista do incentivo (com leis que tornem vantajosa a doação de grandes fortunas para entidades sem fins lucrativos), como do da segurança (que o doador veja que os recursos doados foram efetivamente empregados naquilo a que se propôs).

Mãos à obra para a elaboração de um marco legal para o fomento do investimento social privado, uma das grandes ferramentas para a construção de um futuro social e ambientalmente sustentável.

 

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