A voz e a arte das mulheres

por Camila Fresca 10/09/2019

Em 108 anos de existência, só em duas ocasiões o Theatro Municipal de São Paulo levou ao palco uma ópera escrita por mulher. A primeira foi em 1990, com Fata Morgana, de Jocy de Oliveira. A segunda, agora, em setembro de 2019: a surpreendente Prism, da jovem compositora Ellen Reid, e com libreto de outra jovem mulher, a dramaturga Roxie Perkins. A obra ganhou o prêmio Pulitzer de melhor composição em abril último, e saiu do circuito alternativo norte-americano para ser apresentada numa das mais importantes casas de ópera da América Latina.

A montagem serviu de motivo gerador para dois dias de debates intitulados “Diálogos prismados: a voz e a arte das mulheres”. Tive a felicidade de ser uma das curadoras, ao lado da dramaturga Marici Salomão. Sendo a ópera uma arte que congrega a música e o drama, a ideia inicial era que mulheres da ópera e do teatro pudessem refletir sobre sua condição de artistas, dos entraves históricos às perspectivas que se apresentam nos dias atuais.

A sexta-feira, dia 6 de setembro, foi um dia atípico em São Paulo não apenas por ser véspera de feriado, mas também pela greve de ônibus que travava o centro da cidade e pela baixa temperatura. Nada disso, no entanto, impediu que um expressivo público comparecesse à Sala do Conservatório, na Praça das Artes, para acompanhar o evento. 

As discussões se dividiram em quatro mesas, todas integrando artistas de origens e atuação diversas. A primeira delas, “Mulheres criadoras”, reuniu uma intérprete experiente (a cantora Anna Maria Kieffer), uma jovem dramaturga (a autora de teatro Silvia Gomez) e uma pesquisadora das mulheres nas artes brasileiras (a cientista social Ana Paula Simioni). Mediadas por Claudia Toni, elas procuraram refletir, a partir de suas experiências, como se colocam os obstáculos às mulheres que procuram atuar na vida artística não só como intérpretes, mas também como criadoras, um espaço tradicionalmente reservado aos homens. Nesse sentido, foi muito interessante ouvir Ana Paula Simioni contar como se deu o “apagamento” de mais de 200 artistas plásticas brasileiras atuantes no século XIX, e das quais hoje nada se ouve falar.

“Um homem bom tem o seu lugar garantido. Já a mulher não pode ser apenas boa, tem de ser excelente, impecável” 

“Mulheres empreendedoras”, a segunda mesa do dia, procurou saber como as profissionais das artes se reinventam e encontram caminhos alternativos para “burlar” as restrições (quase todas silenciosas) a elas impostas. “Um homem bom tem o seu lugar garantido. Já a mulher não pode ser apenas boa, tem de ser excelente, impecável”, explicou a dramaturga e diretora Marcia Zanelatto. Vânia Pajares contou das vezes em que teve que confirmar que se tratava de uma “regente de verdade” e afirmou que, na publicidade, “o perfil do regente é o homem branco e velho vestindo casaca”. A dramaturga e roteirista Maria Shu pontuou as dificuldades que se somam quando, além de mulher, se é também uma artista negra. “Num momento de impasse, vocês agem pela força ou pelo afeto?” provocou a jornalista Malu Barsanelli, mediadora da mesa. As respostas foram várias, com exemplos de situações que iam do cômico ao trágico. 

A questão racial, aliás, apareceu desde o início e foi crescendo ao longo das discussões, o que mostra a urgência de um debate que, durante séculos, foi ignorado. Na plateia, muita gente jovem – mas não só – e de perfis diversos. Querendo participar, conhecer e perguntar. As demandas iam muito além do objeto ou do fazer artístico em si, direcionando-se para questões políticas urgentes que, como não poderia deixar de ser, transbordam para a arte. 

No sábado ensolarado do dia 7 de setembro, a terceira mesa tratou justamente de “Mulheres e resistência”. Se a luta das mulheres no mundo das artes (e na vida civil como um todo) está longe de trazer os resultados desejados, a situação se complica ainda mais quando há algum “desvio” em relação à norma hegemônica. Como garantir espaço às minorias (na vida ou no palco) femininas dentro do universo artístico? A partir desse mote, quatro convidadas falaram de suas experiências, mediadas pela cantora e musicóloga Ligiana Costa.

A soprano Edna D’Oliveira abriu a mesa com uma emocionante fala sobre a história das cantoras negras na música brasileira e sobre sua própria história, sendo aplaudida de pé pelo público. As pequenas exclusões dentro de grupos excluídos foram a tônica da fala de Luh Maza, autora de mais de dez textos teatrais, uma das roteiristas da série Sessão de terapia e primeira diretora trans convidada pelo Theatro Municipal a criar uma obra (a peça Transtopia, apresentada em junho). Também estavam na mesa a mezzo-soprano Luisa Francesconi e a atriz e diretora Janaína Leite. 

Conjugar maternidade e arte e lidar com a objetificação da mulher foram alguns dos muitos temas que surgiram. Foi também curioso ver como estão distantes universos que, teoricamente, deveriam ser próximos, como os da ópera e do teatro. As imposições e preconceitos sobre a mulher que ainda vigoram na ópera (restrições a mulheres gordas, velhas e negras, entre outras) chocaram as profissionais do teatro. Era como se, em alguns momentos, os séculos XIX e XXI se olhassem com estranheza. 

Na última mesa, teatro e música, arte e política se equilibraram numa discussão com as autoras de Prism. Ellen Reid e Roxie Perkins responderam questões da compositora Valéria Bonafé, da diretora cênica Livia Sabag e das dramaturgas Carol Pitzer e Michelle Ferreira. Política, abuso sexual, aspectos composicionais e dramatúrgicos, doença mental, condições práticas da produção artística independente no Brasil e nos EUA: tudo isso fez parte do bate papo com as autoras, com ativa participação do público. Em todas as mesas, houve momentos em que as discussões tinham algo de catártico, sobretudo quando o público começava a se manifestar. Alguns contavam experiências pessoais tocantes; outros queriam conselho para encaminhar assuntos que mesclavam impasses artísticos a demandas da vida cotidiana.

Vida, arte e política se misturaram o tempo todo. Nas discussões sobre “a voz e a arte das mulheres”, ficou claro que o fazer artístico nunca se aparta dos embates político-sociais de sua época.
 

Público acompanha mesa de abertura da série Diálogos Prismados [Divulgação/Larissa Paz]
Público acompanha mesa de abertura da série Diálogos Prismados [Divulgação/Larissa Paz]

Leia mais
Crítica
'Prism': vida e morte em uma ópera feita de fragmentos, por João Luiz Sampaio
Notícia Orquestra Sinfônica Heliópolis celebra 23 anos do Instituto Baccarelli
Colunistas Leia outros textos de Camila Fresca

 

Curtir