Mehmari, músico completo

por João Marcos Coelho 01/01/2018

Em CDs e no palco, compositor se consolida como uma das vozes mais interessantes e livres do cenário musical brasileiro

Em 2018 André Mehmari já tem agendado um recital solo na Sala São Paulo, dentro da série “Piano Brasileiro”; lança o CD Mestiços, com Tutty Moreno, Rodolfo Stroeter e Proveta, gravado no Rainbow Studio de Oslo, Noruega; grava um disco com a cantora portuguesa Maria João Grancha; assistirá à estreia de obra encomendada pela Orquestra da Normandia, na França; e acompanhará a segunda temporada da série brasileira para TV 3%, produzida pela Netflix, para a qual compôs a trilha sonora original. Achou pouco? Ele acrescenta “gravações diversas no Estúdio Monteverdi”, o refúgio que construiu acoplado a sua casa na serra da Cantareira. 

Aliás, 2017 foi um “anno mirabilis” em sua carreira. O CD AM60AM40, parceria com o violoncelista Antonio Meneses, foi a cereja do bolo, construído com dezenas de recitais no Brasil e no exterior (Nova York e Buenos Aires, entre outras cidades) e uma penca de CDs num arco variadíssimo – como o sensacional Serpentina, com os argentinos Juan Quintero e Carlos Aguirre; Dorival, com seu trio na fórmula consagrada piano-baixo-bateria; Guris, com o grande Jovino Santos Neto, que tanto brilhou no grupo de Hermeto Pascoal; Araporâ, duo com o baterista François Morin; outro duo, desta vez com o multi-instrumentista, mas basicamente vibrafonista, Antonio Loureiro. Isso além de intervenções preciosas no recentíssimo CD da cantora portuguesa Maria João dedicado à música de Aldir Blanc, com quem aliás ele vai gravar um CD inteiro em 2018. 

André Mehmari [Divulgação]
André Mehmari [Divulgação]

Último detalhe: em 2017, André aperfeiçoou mais e mais a fórmula do recital improvisado com músicas pedidas pelo público, que vem praticando há vários anos. Ele tece ali, no calor da hora, com a plateia em suspense, verdadeiras suítes acolchoadas com os temas lembrados por quem está sentado na poltrona do espectador. “Tenho viajado bastante para recitais solo e, de fato, me sinto bem à vontade com o instrumento e cada vez mais à vontade com as plateias que muitas vezes me sugerem temas para improvisar.” 

A pianista venezuelana Gabriela Montero também faz isso há muito tempo. Mas, em seu caso, os improvisos fazem com que qualquer tema – de breganejo a Jobim, de La cumparsita a Gershwin – se transformem em peças à Chopin-Liszt. Isto é, são encaixotados no vocabulário do piano romântico do século XIX. Gabriela sofre, assim, do pior dos pecados quando se fala em improviso: eles são previsíveis. Com Mehmari, isso jamais acontece. Ele tem o vírus do improviso e da inclusão em seu sangue desde pequenininho. “Ouvir Nazareth no piano de casa é mesmo uma das mais antigas lembranças que tenho”, diz. “Portanto, trata-se de um repertório profundamente enraizado em meu ‘coração-ouvido’ musical. Minha mãe tocava no mesmo piano Jobim, Joplin e Chopin.”

Tento extrair dele como funciona seu processo criativo. E ele responde candidamente que “meu processo criativo é bem menos racional e analítico do que pode parecer a um ouvido externo. As tantas citações e pontes musicais que surgem no processo acontecem muito naturalmente e são propiciadas pela própria contínua natureza mestiça da música brasileira”.

Um exemplo matador. A caminho dos 41 anos, que completará no próximo 22 de abril – e depois de conviver cerca de 15 anos com a famosa Chacona da Partita nº 2 em ré menor BWV 1004, de Johann Sebastian Bach, para violino solo –, André decidiu tocar em público sua “transcrição livre”, como chama, para piano, seguindo ilustres exemplos, como o de Ferruccio Busoni, na passagem do século XIX para o XX. Escrevi transcrição? Não sei se é o caso. Afinal, André não botou no papel a “transcrição”. Ele toca lendo a partitura original para violino solo. Isto é, a cada vez que a interpreta, ele a recria, com seus dedos passeando pelo piano. 

Nisso, aliás, ele repete um procedimento em que os músicos de séculos passados eram craques consumados. Bach era genial improvisando no órgão e em qualquer instrumento de teclado; Beethoven, idem, e cansava de reclamar que via publicados nas semanas seguintes improvisos que ouvidos ladrões capturavam em suas janelas; e Mozart, bem, Mozart era caso à parte, mestre maior nesse domínio, a ponto de escrever as partes de orquestra, mas deixar em branco a parte solista num concerto de piano que estrearia, improvisando diante do público.

É impossível não evocar esses exemplos para qualificar a genialidade de Mehmari. Cada versão que faz da Chacona é diferente. Só no último ano, ele fez uma, maravilhosa, a seu cravo amado; e algumas ao piano. Ouvi a versão para cravo e duas para piano (uma delas ao vivo). “Se fosse incluí-la numa gravação, como faria para escolher a melhor?”, arrisquei a pergunta que não queria calar. A resposta foi a mais simples do mundo: “Como não gosto inteiramente de nenhuma delas, acho que só preciso marcar um dia para gravar ‘pra valer’”. Ok, André “Wolfgang” Mehmari. 

Mesmo correndo risco de ser chamado de lunático, considero que devemos declarar nossa admiração com o máximo de entusiasmo quando encontramos um músico tão completo como André Mehmari. Por isso digo com todas as letras que um dia musicólogos e historiadores da música se debruçarão sobre a produção múltipla e inclusiva dele e dirão: “Como eram afortunados seus contemporâneos”. Do mesmo modo como hoje ficamos babando ao imaginar Bach, Beethoven e Mozart improvisando...

Obs.: No livreto da Osesp, no espaço destinado à especificação do repertório de seu recital de 28 de abril, na Sala São Paulo, está escrito: “Estudos brasileiros”. A conferir.