Vikingur Ólafsson: um Bach para carregar no coração pelo resto da vida

De algumas apresentações, a gente sai com a sensação de que foi “o concerto do ano”. De outras, bem mais raras, com a de que foi uma performance para carregar no coração pelo resto da vida. O recital de Vikingur Ólafsson dedicado às Variações Goldberg na Sala São Paulo, no último domingo, dia 28, na série da Osesp, é destes destinados a se inscreverem eternamente na memória de todos que tiveram a felicidade de comparecer.

Disponível nas plataformas, o disco da Deutsche Grammophon em que o pianista islandês interpreta a obra-prima bachiana é um deleite – e, por isso, sua apresentação vinha sendo das mais concorridas. Se a Osesp normalmente encolhe a Sala para seus recitais, ao longo das semanas vinha gradualmente liberando novos ingressos – rapidamente esgotados pelo ávido público paulistano.

Por mais elevadas que fossem as expectativas deste público que prendeu a respiração ao longo dos 75 minutos de apresentação ininterrupta, elas se viram largamente superadas pelo que se verificou no palco da Sala São Paulo. A tecnologia de gravação e de reprodução dos fonogramas pode ter avançado incrivelmente, mas não conseguem dar conta da aura de um artista consumado como Vikingur que, com 40 anos recém-completados, consegue passar uma sensação de frescor e espontaneidade, como se estivesse criando sua interpretação no momento em que ela é realizada, sem que se perca um sentido geral de profundo controle arquitetônico – e, portanto, intelectual – da partitura.

Em um certo sentido, o piano de Vikingur contém os instrumentos de tecla à disposição de Bach no século XVIII, sintetizando intimismo do clavicórdio, a agilidade do cravo e a paleta de cores do órgão

Se ainda fosse cabível aquela discussão antiquada a respeito da legitimidade de tocar Bach ao piano, ela se veria irreversivelmente enterrada pela performance de Ólafsson. Ao escrever as Goldberg, em 1741, Bach parecia não apenas estar prevendo as possibilidades do piano moderno, como as qualidades técnicas dos virtuoses que viriam a se dedicar a obra. Em um certo sentido, o piano de Vikingur contém os instrumentos de tecla à disposição de Bach no século XVIII, sintetizando intimismo do clavicórdio, a agilidade do cravo e a paleta de cores do órgão.

Além de uma das mais deslumbrantes sonoridades que se pode imaginar, Ólafsson tem recursos que parecem tender ao infinito. Ele dá a impressão de que poderia tocar o que lhe desse na telha – e que bom que quis tocar Bach. Nas Goldberg, o islandês acentua o contraste entre cada variação, e vai colocando seu pianismo versátil a serviço das características que identifica em cada uma delas.

Ele tanto pode realizar prodígios de extrema velocidade (em que a rapidez não exclui a clareza da enunciação de cada uma das notas) como construir meditativos arcos de tensão lírica. O entendimento clarividente do contraponto bachiano parece informar toda a concepção da peça, e Vikingur modela as sutilezas de dinâmica e o colorido do teclado para evidenciar cada uma das vozes da intricada tapeçaria da partitura.

Ao final, a sensação era de puro assombro e encantamento. Vikingur anunciou aos espectadores que voltará à Sala São Paulo em três anos. E todos nós saímos de lá com um compromisso marcado para 2027. Até!

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Vikingur Ólafsson durante ensaio no palco da Sala São Paulo [Divulgação/Osesp]
Vikingur Ólafsson durante ensaio no palco da Sala São Paulo [Divulgação/Osesp]

 

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Comentários

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Querido Irineu, concordo completamente com os seu comentário. No meu Instagram postei uma foto desse enorme pianista com um texto que diz "Víkungur Ólafsson depois de uma memorável execução das Variações Goldeberg". Sem dúvida eu prendi a minha respiração durante esses 75 minutos.

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