Caminhos da voz

por João Luiz Sampaio 01/12/2019

Entrevista com a mezzo soprano Luisa Francesconi

Dezembro será um mês cheio para a mezzo soprano Luisa Francesconi. Após participar da nova produção de Eugene Onegin, de Tchaikovsky, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, ela canta a Nona sinfonia de Beethoven no encerramento da temporada da Osesp em São Paulo e vai a Campinas interpretar o Réquiem de Mozart. 

São duas obras-chave do repertório sinfônico coral que, em sua trajetória, se somam a 49 produções de ópera, que fazem dela uma das principais cantoras líricas brasileiras de sua geração. Para falar das apresentações, assim como de sua trajetória artística, a Revista CONCERTO conversou com Francesconi, que abriu um horário em meio à intensa agenda de ensaios para Eugene Onegin

Luisa Francesconi [Divulgação]
Luisa Francesconi [Divulgação]

Você começa o mês com a última récita de Eugene Onegin, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e em seguida participa da interpretação de duas obras marcantes do repertório sinfônico coral, a Nona de Beethoven e o Réquiem de Mozart.
É um repertório muito importante para mim, desde o início de minha trajetória. Estreei em 1998 com a Nona de Beethoven, por exemplo, e isso a torna particularmente especial, pois durante o concerto meu avô faleceu. O Réquiem eu cantei primeiro no coro e depois como solista. Enfim, são obras que sempre me acompanharam e que me dão enorme prazer. No entanto, no repertório sinfônico há outros autores fundamentais, como Berlioz, de quem cantei Les nuits d’ét é. A música francesa me atrai muito, combina com minha voz. Na ópera, penso em Werther, Dom Quixote, Les troyens, e nas canções há ainda A morte de Cleópatra, de Berlioz, e Sheherazade de Ravel.

Você falou do início de sua trajetória. Como se deu, para você, a descoberta do canto?
Eu estudei piano desde os 5 anos de idade com minha avó, que morava no Sul e dizia que eu tinha jeitinho de pianista. Ela tocava Chopin maravilhosamente bem, e isso ficou em minha memória. Na escola, no segundo grau, criaram um coral, e quem participasse ficava dispensado das aulas de educação física [risos]. Eu já estudava na Escola de Música de Brasília, cantava no coro e já fazia também alguns solos. Dois anos depois, o diretor da escola faleceu e eu comecei a reger o grupo. Com 18 anos, fiz minha estreia em ópera, como Kate Pinkerton em Madama Butterfly, de Puccini. E fui fazer faculdade também e me formei em psicologia.

Nessa época, você se mudou para Milão.
Eu já estava casada com o [maestro Silvio] Barbato, que me incentivou a estudar fora do Brasil. A psicologia é uma paixão muito grande, tão grande quanto o canto. Mas a conta que fiz foi: para ser psicóloga, não preciso da musculatura; para ser cantora, sim. Então resolvi que aquela era a hora de investir nesse caminho. Na época, o [barítono] Sandro Cristopher e a [soprano] Claudia Riccitelli eram alunos da Rita Patané em Milão, e eu admirava muito o jeito deles de cantar. Então fui para lá, fiquei anos viajando, entre a Itália e o Brasil, onde comecei a cantar minhas primeiras produções.

Qual é a lembrança que você tem do estudo com Patané?
Era uma professora muito dura, eu ouvia muito “não” dela – e era de propósito –, porque na carreira isso acontece bastante, em audições, em concursos. Ela trabalhou comigo em todos os sentidos técnicos, me ensinou o que era cantar em italiano. Ela foi durante muitos anos professora da Manhattan School of Music, então de certa forma aliava a questão da precisão técnica norte-americana com a tradição italiana.

E os primeiros papéis foram aparecendo.
Em 2002, cantei em Manaus pela primeira vez, um Stabat Mater, de Pergolesi, e depois voltei, em 2005, para participar de O anel, de Wagner, e de O barbeiro de Sevilha, de Rossini. Em 2003, estreei no Theatro Municipal do Rio de Janeiro cantando Madalena, em Rigoletto. Minha primira vez no Municipal de São Paulo, com L’italiana in Algeri, foi em 2006 – mais um Rossini. Eu tinha facilidade para a coloratura, era algo que a Patané me ajudava a desenvolver. E na Itália comecei a cantar em Roma, em Palermo, Torino. Depois me mudei para Lisboa, onde cantei bastante também.

A carreira de solista carregava alguma angústia?
Sempre. Muita angústia, na verdade. Porque viver como freelance não é fácil, você faz um trabalho e fica dois, três meses parada, é complicado, é preciso se organizar com cuidado, inclusive financeiramente. Meus pais ficavam muito tensos [risos]. O que me aliviava um pouco era saber que eu tinha o diploma de psicologia, que podia recorrer a ele se tudo mais desse errado. Ao mesmo tempo, os intervalos livres também servem para você estudar, se preparar. Isto para mim é muito importante: eu estudo muito os meus papéis. Para fazer O cavaleiro da rosa, fui a Viena estudar com um coach da Ópera de Viena. Quando fizemos La clemenza di Tito, eu e Gabriella Pace fomos para Florença. Antes de fazer Onegin, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, fui estudar russo. 

Em um contexto como esse, em um mercado como o brasileiro, com poucas óperas, é possível montar um plano de carreira, ou seja, imaginar uma sequência de papéis ou mesmo de repertórios que você gostaria de abordar, de acordo com a evolução da voz?
Se sou uma cantora de ópera fazendo carreira no Brasil, preciso entender que não tenho o luxo de escolher repertório. Há, claro, alguns limites. Eu sei, por exemplo, que cantar Verdi, papéis pesados como Azucena, em Trovatore, é algo que não posso fazer. Mas nós precisamos trabalhar. E por isso temos que estar abertos.

Você citou agora há pouco O cavaleiro da rosa, de Strauss, que cantou no ano passado no Theatro Municipal de São Paulo. A crítica definiu sua interpretação como a de uma cantora madura, no auge de sua trajetória. Você vê dessa forma?
Ao que parece, fui a primeira brasileira a cantar o papel de Octavian, o que me deixou espantada e feliz. Há quatro anos, eu não me via cantando Octavian, não estava pronta. Mas tudo é um processo, e, no palco, de fato eu tinha a sensação de que sabia o que estava fazendo, de que estava à vontade com aquele universo, com a cultura que ele representava, com os desafios vocais. Então, foi mesmo um momento especial. Mas eu não paro de estudar, já fiz duas pós-graduações tendo a voz como tema. São questões eternas, e para mim é um perigo parar de me dedicar a elas.

Você completou recentemente o mestrado, em que escolheu como tema papéis travestidos, ou seja, em que mulheres interpretam personagens masculinos. Como foi a decisão de tratar desse tema? Sua própria carreira foi uma inspiração?
Quando disse ao diretor André Heller-Lopes que queria fazer um mestrado, ele me disse para escolher algo pelo que fosse apaixonada, porque exigiria muito estudo. Eu sou apaixonada por interpretação teatral na ópera. E sempre achei interessante a ideia de construir um papel masculino no palco. Em um primeiro momento, eu me dedicaria a O cavaleiro da rosa, e isso foi muito antes de ser convidada para cantar a ópera. Mas descobri que alguém já estava estudando justamente esse título, então resolvi mudar um pouco o foco e parti para a ideia de entrevistar dez cantoras brasileiras que já haviam cantado pelo menos três personagens travestidos no palco.

Mas seu trabalho vai além da interpretação do cantor, toca na questão de gênero.
Eu sempre senti mais poder e liberdade no palco ao interpretar um papel masculino, o que me levou a pensar sobre o modo como se constrói a ideia do homem e da mulher. Mas não só. Se eu posso, do palco, convencer a plateia de que sou um personagem masculino, então a questão de gênero fica muito clara como construção social. E isso me fez estudar autores como Judith Butler e adentrar o universo da musicologia queer, da musicologia feminista, campos que têm gerado estudos muito interessantes e que passei a incorporar em minha pesquisa, indo além da noção binária na questão de gênero.

Você fala, de certa forma, da ópera como retrato do mundo.
E ela é. Essa é uma das grandes forças da ópera, e não entendo como isso não é mais explorado por quem trabalha com ela. Você pode estar à frente de uma obra do século XVIII ou do século XIX, que retrata a sociedade contemporânea. Contudo, o modo como a sociedade opera não mudou tanto assim, a questão dos direitos humanos e a questão da mulher são exemplos disso. Então, colocar uma ópera no palco é fazer pensar sobre isso, com a ajuda da música, que torna o processo ainda mais visceral e intenso. 

Você tem se dedicado bastante ao ensino, também. Dar aulas é algo que lhe interessa particularmente?
Eu não gosto de dar aulas, eu amo dar aulas. Fui fazer psicologia para tentar ajudar as pessoas. E dar aulas é um pouco isso também. Dar aula de canto é essencialmente ajudar o outro a encontrar a própria voz. Essa é uma oportunidade única para um cantor. E tenho a chance de compartilhar minha experiência, já são, afinal, 49 óperas no currículo... E me faz continuar a estudar, em especial a fisiologia da voz, e a pedagogia vocal, que é o campo em que pretendo fazer meu doutorado.

E nos palcos, quais os planos?
Quero muito cantar Compositor, em Ariadne auf Naxos, de Strauss; Adalgisa, em Norma, de Bellini; Mignon, ópera do Ambroise Thomas. Além disso, Mozart e o período do bel canto são meu universo. A voz encorpou com o tempo, mas continuo a ser essencialmente uma mezzo soprano lírica, então é esse meu caminho. Não sei... talvez Eboli [em Don Carlo, de Verdi] daqui a um tempo...

Obrigado pela entrevista. 


AGENDA
Ópera Eugene Onegin, de Tchaikovsky
Dia 1º, Theatro Municipal do Rio de Janeiro
Réquiem, de Mozart
Dias 6 e 7, Catedral Metropolitana de Campinas
Sinfonia nº 9, de Beethoven
Dias 12, 13, 14 e 15, Sala São Paulo