Por Guilhermina Lopes*
Na noite de 21 de dezembro, o público de Belo Horizonte teve a oportunidade de assistir a cinco estreias de ópera em um mesmo espetáculo. Antes que o leitor imagine façanha de paciência ou de desespero “pós-pandêmico”, observo que se trata de óperas curtas, de cerca de dez minutos, em português e, na maior parte do tempo, em linguagem coloquial.
O espetáculo Viramundo, uma ópera contemporânea é parte do Ateliê de Criação da Academia de Ópera do Palácio das Artes 2021, projeto iniciado em agosto. Os participantes, atores, diretores, músicos, acadêmicos, jornalistas, tiveram aulas de dramaturgia musical com o escritor e roteirista Geraldo Carneiro e com diversos professores convidados (dentre eles o grande diretor norte-americano Peter Sellars), passando por temas como teatro grego, ópera infantil, dramaturgismo, formação e relação com o público e muito mais. Também foram transmitidas lives com convidados, todas ainda disponíveis no canal da Fundação Clóvis Salgado no YouTube.
O principal objetivo do Ateliê era a composição de novas óperas, livremente adaptadas a partir do romance O grande mentecapto, do escritor mineiro Fernando Sabino, e apresentadas no espetáculo do dia 21.
Apesar de deixar explícita a fragmentação e a identidade individual de cada obra, a diretora Rita Clemente conseguiu encadear as composições numa espécie de sequência narrativa, além de trazer também à montagem coesão cênica e visual, a partir de cenário minimalista, em que as malas constituíram um elemento de múltiplos usos, funções e significados.
A abordagem metalinguística de Os Circunvagantes, com libreto de Luiz Eduardo Frin e música de Maurício de Bonis, fez com que a obra fosse perfeita para abrir a noite e apresentar o espetáculo. Os palhaços Pancada (Giovanni Tristacci), Lelé (Flávio Leite) e Aluado (Ramon Mundin), três tenores com personalidades distintas e em fina sintonia, enfrentam ameaças enquanto ensaiam a cena final da saga de Viramundo.
Logo de início, uma bela homenagem aos palhaços brasileiros, com menções a Arrelia, Piolin e Benjamin de Oliveira (1870-1954), o primeiro palhaço negro. Também vale destacar a comovente crítica ao desastre da barragem de Mariana – cidade que é um dos cenários do romance de Fernando Sabino – e a ref(v)erência ao congado ao final.
Nessa cena, contudo, a homogeneidade musical em relação ao restante da ópera, predominantemente atonal, diminuiu, a meu ver, o potencial impacto que uma quebra a partir da inserção de um trecho harmônica e melodicamente mais próximo dessa manifestação popular poderia trazer. Por outro lado, devo reconhecer outro tipo de impacto dramático proporcionado por essa sobreposição de bandeira de congado e tensão musical, sendo a “cereja do bolo” o momento em que os três palhaços se deitam nas malas que compunham o cenário, como se elas fossem caixões.
Não gosto de corpo acostumado, com libreto de Djalma Thürler e música de Denise Garcia, põe em relevo a condição marginal de Viramundo, ao lado de um coro de personagens vistas como desviantes pela sociedade conservadora, como loucos, prostitutas, mendigos, queer etc. Foi bonito ver como essa proposta cênica foi abraçada pelo grupo de cantores do Coral Lírico de Minas Gerais, com destaque especial para o barítono Pedro Vianna.
A escrita coral da compositora é um dos pontos de maior destaque nesta ópera, sobretudo na referência inicial ao canto de vários tipos de pássaros e no tratamento onomatopaico do texto na cena do trem – cena que, por ser um ponto de virada na narrativa, se fez presente na maioria das adaptações criadas pelos libretistas.
Fui positivamente surpreendida pela escolha de um barítono para o papel de Viramundo. A projeção vocal e homogeneidade de timbre nos diferentes registros foram pontos fortes da performance de Lucas Nogueira. Sua dicção, embora perfeitamente clara, chegava a soar estrangeira em alguns momentos, devido à ênfase excessiva na pronúncia dos “r” e a uma certa fuga dos sons nasais. Esse problema se fez sentir também, em alguns momentos, em outros cantores do espetáculo. Com relação a isso, dentre os solistas convidados, o tenor Giovanni Tristacci conseguiu melhor equilíbrio entre técnica vocal, dicção e atuação.
O fechamento carnavalesco, outro ponto alto, traz uma leveza necessária ao equilíbrio da narrativa. Senti, à exceção desta ópera, que a concepção da montagem trouxe um peso bem maior ao teor dramático que ao cômico, ambos presentes tanto nos libretos quanto no romance, assimetria reforçada, em maior ou menor grau, pelas abordagens musicais.
Em As três mortes de Geraldo Viramundo, de Ricardo Severo e André Mehmari, texto e música relacionam-se de maneira muito fluente e orgânica. É também notável a maior coloquialidade e presença da pronúncia regional na escrita do libreto.
A parte inicial, no rio, enfatiza o aspecto introspectivo, a percepção, pelo protagonista, de suas emoções. A cena do trem tem também aqui papel central. Assim como Denise, Mehmari põe em destaque o coro, a partir de uma escrita musical bem elaborada, mas não tão diversa estilística e tecnicamente como a de sua colega. O papel do grupo é sobretudo cênico, tendo os cantores a dupla função de narrador e personagem. O Viramundo de Tristacci, como já referido, estava excelente.
Iniciando-se com uma visual e musicalmente belíssima referência à encomendação das almas, manifestação religiosa popular de origem portuguesa, a terceira e última parte, “o porvir”, é uma passagem dinâmica dos episódios restantes (paixão de Viramundo pela filha do governador, episódio da viúva “Peidolina”, passagem pelo hospício de Barbacena e, finalmente, seu linchamento). Tudo muito bem realizado e alinhavado.
Flávio Leite foi um protagonista extremamente convincente em Viramundo, Viraflor, com libreto de Julliano Mendes e música de Antonio Ribeiro. Conseguiu transmitir, desde o primeiro olhar, a mistura de criança, doido e vagabundo que cerca a personagem e conquista a simpatia e piedade do espectador.
Texto e música são fortemente marcados pelo diálogo com a tradição, numa criativa exploração da rima e métrica regulares e da alternância modal-tonal. É forte a presença da música sacra e religiosidade associadas à cultura mineira no belíssimo Kyrie inicial.
Percebe-se claramente que esta ópera curta é o projeto de uma obra maior – inicia-se com a morte de Viramundo e homenagens dos que cruzaram seu caminho e segue com o que seria o início de uma narrativa em flashback, com a apresentação do protagonista.
Uma provocação ao espectador é colocada ao se estabelecer um contexto cênico e musical muito solene quando Peidolina conta as divertidas “façanhas” de Viramundo, escritas em linguagem leve e bem-humorada – dissonância que não resulta em comicidade, mas em uma grande sensação de estranhamento.
O julgamento, com libreto de Bruna Tameirão e música de Thais Montanari, duas jovens que não ficaram em nada a dever aos seus colegas mais experientes, traz uma cena totalmente nova, desenvolvida a partir de personagens e situações do livro de Sabino, inclusive com a criação de personagens: Juiz, Carcereira, Reverie e Espectro. Outra personagem do livro posto em destaque é o Dr. P. Legrino, homenagem ao poeta mineiro Hélio Pellegrino, grande amigo do autor, que aqui figura como advogado de defesa, numa ótima interpretação de Lucas Nogueira.
Sylvia Klein brilhou como Reverie/Espectro. Foi, por sinal, impressionante vê-la interpretar um papel originalmente escrito para mezzosoprano, com uma voz de peito que nos faz perguntar onde foi parar a Serpina da ópera La serva padrona, de Pergolsei, filmada por Carla Camurati.
Dentre as composições, esta se destaca pelo uso mais ousado da orquestra, com forte presença de técnicas estendidas, e maior interação da escrita instrumental com a cena. O silêncio também tem papel muito importante. O canto em conjunto aqui tem função primordialmente cênica, não coral, remetendo aos finali de óperas de Mozart.
Numa provável intenção de sintonia com o todo, a multimodalidade que marca o estilo de Thais aparece nesta montagem de forma muito discreta, com a voz pré-gravada em off de Klein lendo um trecho de Eichmann em Jerusalém, de Hannah Arendt.
Vale destacar ainda a presença do Ballet Jovem de Minas Gerais ao longo de todo o espetáculo, trazendo às cenas grande movimento e expressividade, como uma espécie de coro comentador silencioso.
Cinco óperas contemporâneas, em português, tão diversas. Lívia Sabag e Gabriel Rhein-Schirato conseguiram uma façanha – esta sim – de inovação e coragem. O Ateliê veio para mexer com o mundo da ópera no Brasil. Espero que seja para ficar.
* Texto produzido no módulo de jornalismo e crítica musical do Ateliê de Criação: Dramaturgia e Processos Criativos, promovido pela Fundação Clóvis Salgado, sob orientação de João Luiz Sampaio
![Cena de "Viramundo, uma ópera contemporânea" [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/Viramundo_norma%20%281%29.jpg)
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