Não parece haver limites para os integrantes do Quarteto Kronos, capazes de proporcionar mais do que um concerto convencional; mas me lembrei do musicólogo francês Laurent Denave e do que ele chama de revolução conservadora na música dos Estados Unidos
Saí do acolhedor Teatro de Cultura Artística na noite de sábado com um sentimento misto. E lembrei-me de que experimentei a mesma sensação onze anos atrás, numa apresentação do Quarteto Kronos no Sesc Pinheiros. De um lado, quatro músicos notáveis, para os quais não parece haver limites, capazes de proporcionar mais do que um concerto convencional: na verdade, um show, incluindo luzes, amplificações sonoras, manipulações eletrônicas, etc. Mas, quando percebi que havia escrito “show”, me dei conta de que nos Estados Unidos a música dita contemporânea, ou nova, exibe sempre o DNA de uma estética que o musicólogo francês Laurent Denave chama de “revolução conservadora”. O livro é de 2012, mas soa a cada ano mais atual e adequado para tentarmos compreender o caleidoscópio da cena musical contemporânea.
O Kronos nasceu nos anos 1970, no momento em que o minimalismo tornou-se hegemônico na música norte-americana. E desenvolveu sua carreira tornando-se parceiro preferencial dos grandes nomes do movimento, como Terry Riley, Steve Reich e Philip Glass. Vale a pena lembrar como Denave justifica aplicar o conceito de revolução conservadora ao movimento: “O minimalismo, mais particularmente a ‘música repetitiva’ (de Terry Riley, Steve Reich, Philip Glass, etc.) é o sintoma de uma possível transformação em profundidade do mundo musical norte-americano. Introduz a lógica comercial na esfera da música nova, ameaça a autonomia do espaço da criação musical em relação ao mundo econômico”.
Ele chama o minimalismo de ameaça clara: “Não são apenas as produções mais recentes do mundo cultural norte-americano (como a música repetitiva) que invadem o mercado europeu (e mundial), mas é o próprio modelo norte-americano, um espaço social dominado de forma esmagadora pelo polo comercial, que é exportado para a Europa”. Segundo Denave, o Kronos é um dos cavalos-de-troia infiltrados que estaria “minando” o modelo europeu de vanguarda radical e experimental cultivado deste a Segunda Escola de Viena.
Não é preciso concordar com ele. Basta permanecer alerta e detectar concessões excessivas ao gosto popular fincado no dogma mais-do-mesmo. O Kronos é direto: concebe seus concertos como shows, aliás irretocáveis. Oferecem de tudo, para todos os gostos. Misturam Reich e Riley com Patti Smith e Nina Simone. O toque atual fica por conta de Laurie Anderson, um símbolo desta estética.
E, antes que pensem que eruditamente me horrorizei com o concerto da temporada da Tucca, esclareço que gostei muito, do começo ao fim. Sobretudo do lado engajado de David Harrington, a cabeça pensante e idealizador do quarteto nos idos de 1973. É emocionante compartilhar Ya Taali’een ‘Ala el- Jabal sabendo que ela é “uma canção tradicional do início do século XX que costumava ser contada por mulheres palestinas para seus maridos, filhos e irmãos presos na época da ocupação britânica” (reproduzo o texto do programa).
Outro grande momento foi a peça que abriu o concerto: Good Medicine de Salome Dances for Peace, do decano do minimalismo Terry Riley, que completou 90 anos no último dia 24 de junho. A peça foi composta especialmente para o Kronos.
No entanto, a segunda parte impactou bem menos do que a primeira. É que os truques e cacoetes da música minimalista, que os franceses acidamente porém corretamente chamam de “repetitiva”, só funcionam e provocam surpresa quando você os escuta pela primeira vez.
Talvez tenha sido um erro deixar o Triple Quartet de Reich para o final. A repetição permanente em triplo fortissimo do mesmo motivo por cerca de 15 minutos dá mais do que enfado, incomoda mesmo os ouvidos. Porém, rápido no gatilho, o Kronos engatou três extras palatáveis que recolocaram o show nos eixos. E foram muito aplaudidos.
![Quarteto Kronos [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-quarteto-kronos-site.jpg)
É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.
Comentários
Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.