O cinema e a dança – sob uma intimista e estética relação secular

por Redação CONCERTO 13/10/2023

Por Wagner Corrêa de Araújo [jornalista especializado em cultura, crítico de artes cênicas (dança, ópera e teatro) no blog autoral Escrituras Cênicas e jurado de prêmios teatrais]

Desde as primeiras experimentações da imagem em movimento ao final do século XIX, nos primórdios da criação cinematográfica, a dança teve um papel tão fundamental quanto o teatro. Não só através de esboços coreográficos inspirados nas formas clássicas, como também por meio de pantomimas burlescas, sempre acompanhadas ao vivo pelo piano ou pequenos grupos instrumentais.

Georges Méliès (1861-1938) e os irmãos Auguste (1862-1954) e Louis Lumière (1864-1948), considerados os precursores da estética cinematográfica, amavam as danças exóticas, tornando-se histórica a atuação documentária da bailarina americana Loïe Fuller (1862-1928) no livre movimento de sua “Dança das serpentinas”, uma antecipação visionária da dança contemporânea. Havia nesta época, é claro, o desafio da sincronização da imagem dançante com o acompanhamento musical, pois ainda se estava na era do cinema mudo.

Por esta razão, sente-se falta do registro fílmico de grandes performances, nas duas primeiras décadas do século XX, como as de Vaslav Nijinsky (1889-1950) no palco, incluindo-se aí também os fragmentários flashes de Anna Pavlova (1881-1931) e Isadora Duncan (1877-1927) em cena. O que só seria superado com a chegada do som e a explosão da era de ouro dos musicais hollywoodianos, revelando o virtuosismo dançante de Fred Astaire (1899-1987) e Gene Kelly (1912-1996) e a magia imponente dos filmes coreográficos de Busby Bekerley (1895-1976).

Por outro lado, o cinema documentário começou a preservar espetáculos completos das grandes companhias clássicas e as atuações referenciais de Margot Fonteyn (1919-1991), Rudolf Nureyev (1938-1993) e Mikhail Baryshnikov, nascido em 1948, em filmes que chegaram a alcançar o circuito comercial. Enquanto obras fílmicas com um olhar mais inventivo na busca de novos caminhos coreográficos, surpreendiam, simultaneamente, o universo da dança e do cinema.

Do inovador Ballet Mécanique, de Fernand Léger (1881-1955) e George Antheil (1900-1959), em 1924, ao inventivo Pas-de-Deux, de Norman McLaren (1914-1987), de 1968 – neste último caso, através do cinema de animação, iniciado por Walt Disney (1901-1966) com o filme Fantasia, em 1940, com três recortes coreográficos inspirados pela Sinfonia pastoral de Beethoven, a Sagração da primavera de Stravinsky e a Dança das horas de Ponchielli.

Coexistindo com uma tendência de filmes narrativos na abordagem da dança sob outros aspectos, sociais e psicológicos como em All That Jazz, 1979, de Bob Fosse (1927-1987) ou O baile, 1983, de Ettore Scola (1931-2016), ou sob direcionamento mais biográfico falando dos bastidores do mundo do balé, como Red Shoes, 1948, de Michael Powell (1905-1990) ou Billy Elliot (Stephen Daldry, 2001), além do marcante ciclo de filmagens coreográfico/ficcionais de Carlos Saura (1932-2023).

Neste gênero, em que é priorizada a narrativa dramática no entorno de uma personagem que tem uma relação imersiva com o universo da dança, vale a pena destacar, na mais atual safra de produção, o filme do conceituado cineasta francês da última geração Cédric Klapisch, O próximo passo (En Corps), de 2022, exibido no Brasil por iniciativa do Festival Varilux, que reúne o melhor da recente produção do cinema francês. 

O filme foi resultado de experimentações de Klapisch com a dança e que começaram com um documentário sobre um dos nomes estelares da Ópera de Paris – Aurelie Dupont

O filme foi resultado de experimentações de Klapisch com a dança e que começaram com um documentário sobre um dos nomes estelares da Ópera de Paris – Aurelie Dupont. Ao qual se seguiu o filme com outro dos nomes em grande relevância do Ballet de l’Ópera – Marion Barbeau, filmado ainda sob os últimos reflexos do surto da Covid-19, contando o drama de uma jovem bailarina clássica que torce o pé ficando impossibilitada de seguir em sua companhia. Deprimida e não sabendo o que fazer até que reencontra a alegria de viver optando por novas perspectivas gestuais na dança contemporânea. 

“Fiz um casting, com cerca de cinquenta atrizes e dançarinas. Rapidamente entendi que não era necessário ter uma atriz que soubesse dançar, mas sim uma dançarina que soubesse atuar. Marion Barbeau, bailarina principal da Ópera de Paris, consolidou-se pela emoção que exala. Ela está acostumada a estar no palco, a brilhar, mas tem um certo pudor e timidez...” – para Cédric, por este angulo psicofísico, Barbeau foi a escolha ideal para protagonizar O próximo passo.

Quanto à expressão pura da dança, cineticamente encarada como uma obra de arte autônoma, foram, aos poucos, surgindo múltiplas tendências. Como a videodança, podendo ser denominada também como cinedança, e, a partir dos anos 90, encontrando um lugar à parte nas exibições públicas e nas plataformas das redes digitais, onde se estabelecia uma relação intimista entre o corpo dançante e os recursos cinético-visuais, em obras de curta duração. 

Um movimento antecipado nos anos 40 nos filmes experimentais com um forte apelo vanguardista da cineasta, bailarina e coreógrafa americana de ascendência ucraniana Maya Deren (1917-1961), fazendo uso das técnicas tradicionais do cinema para expressar uma corporeidade gestual inusitada, evocando uma participativa envolvência bailarino/espectador. O que inspirou um recente espetáculo de peça-filme intitulado Maya, idealizado e interpretado pela bailarina, atriz e cineasta Patricia Niedermeier, na dúplice direção junto com Cavi Borges, de alcance inovador e pulsão sensorial, indo dos palcos do Rio a um festival em Amsterdam.

“Para mim encenar Maya foi um grande desafio, porque Maya Deren foi a primeira cineasta que investigou profundamente a relação do corpo, da dança, com a câmera cinematográfica. Essa também é uma pesquisa que me interessa tendo o corpo como base no meu trabalho, seja no cinema, na dança contemporânea, no teatro ou em performances. Ela rompeu muitos paradigmas inclusive nos processos de montagem de seus filmes, explorando as imagens, o som e o corpo pelo olhar da câmera, se tornando uma grande referência na vídeo dança. Em seu livro ‘Um anagrama de ideias forma e filmes’, Maya aprofunda suas percepções sobre a linguagem cinematográfica. A dança, o cinema e a poesia se encontram no trabalho dessa pioneira no cinema experimental, inspirando e desafiando muitos artistas até hoje”, afirma Patricia Niedermeier.

Esta sensorialidade se tornou habitualmente presente, ao longo dos anos e com assumida priorização em boa parte das performances contemporâneas que conectam, seja no palco ou nas telas digitais, um dimensionamento do movimento corporal – que faz o bailarino dialogar, se reinventando gestualmente através do reflexo de sua imagem – com as projeções cinéticas na caixa cênica. 

O encontro da dança com o cinema está na gênese do cinema como arte do movimento

O diretor e coreógrafo Gustavo Gelmini, em sua exemplar maestria nas criações performáticas de cinedança, além de seu oficio coreográfico para os palcos, com seus estágios de especialização em Paris, diz em incisivo depoimento enviado de lá: “O encontro da dança com o cinema está na gênese do cinema como arte do movimento. Quando observamos que a montagem cinematográfica criada por Serguei Eisenstein, nos primórdios do cinema, influenciou o cinema que vemos hoje, observamos também como Eisenstein foi influenciado por Meyerhold e sua biomecânica, por um teatro fundamentalmente corporal. A emoção que é produzida pelo corpo e pelo movimento. Dito isso, quando penso em dança, eu penso em cinema, e quando penso em cinema, eu penso em dança. São indissociáveis para mim. Portanto, quando coreografo um espetáculo de dança, eu monto, como se montasse um filme, e quando eu monto uma cinedança, estou coreografando. Esta abordagem multidisciplinar vem ganhando cada vez mais espaço com artistas contemporâneos que encontro por aqui, como por exemplo o coreógrafo e artista visual francês Smaïl Kanauté”.

Sobre seu próximo espetáculo Pulso, com o bailarino e coreógrafo Renato Cruz, em fase de criação e ensaios, a ser apresentado no Theatre de L’Opprimé, em Paris, Gelmini esclarece: “Em Pulso, Renato Cruz interage com o também coreógrafo e bailarino Paulo Caldas, que volta à cena em projeção desde sua última aparição em cena justamente com seu espetáculo intitulado Filme (2007) e repete comigo, assim como Renato, uma parceria que atravessou todo o meu percurso como cine-coreógrafo. É um grande prazer investigar com estes grandes artistas, questões que atravessam não somente a estética entre a dança e o cinema e que tocam a dramaturgia de um espetáculo, mas também investigar os nossos lugares de homens na dança, em uma sociedade extremamente afetada pelo patriarcado”.

Duas das mais inventivas experimentações fílmicas nas relações dança/cinema no Brasil tiveram como mentor o premiado cineasta Evaldo Mocarzel, um exímio artesão na manipulação da linguagem dos chamados doc filmes, focalizando a São Paulo Companhia de Dança em dois momentos coreográficos, a saber, com Polígono, obra de Alessio Silvestrin, em 2008, e Canteiro de obras – Ensaio sobre o movimento, em 2012.

Sobre o ideário fílmico, no processo de criação de seus filmes conceituais abordando momentos cotidianos e coreográficos da São Paulo Companhia de Dança, com uma estética de montagem absolutamente diferencial e inovadora no uso de seus elementos tecnoartísticos, diz Mocarzel: “Para coreógrafos, bailarinos e bailarinas, e ainda para todos que amam essa linguagem esplendorosa de corpos e gestos, a dança é uma manifestação artística poderosíssima, ancestral e sempre muito contemporânea, uma espécie de cenário originário da natureza humana, em que vislumbramos primatas dançando alentados por mitos muito antes das palavras e dos mais de três mil anos de razão metafísica. Por tudo isso, quero que este doc seja uma declaração de paixão incondicional pela dança, mas quero que tudo isso esteja entranhado na elaboração da linguagem do nosso filme. Para que este objetivo seja alcançado, você precisará, no seu processo de montagem, utilizar procedimentos de linguagem que serão os pilares do nosso arcabouço audiovisual e aí então o nosso filme vai dançar, audiovisualmente, irradiando na tessitura de sua edição uma cadência, um suingue, tudo encadeado com uma sutil e necessária coreografia de imagens e sons”.

Ao mesmo tempo em que existe o desafio da transmutação estética da dança entre o palco e a tela, com a expansão da internet, o espectador tem acesso facilitado e quase ilimitado aos avanços da criação coreográfica

Ao mesmo tempo em que existe o desafio da transmutação estética da dança entre o palco e a tela, com a expansão da internet, o espectador apaixonado, os iniciantes no ofício e o profissional/pesquisador têm acesso facilitado e quase ilimitado, na ambiência doméstica de suas casas, aos avanços da criação coreográfica, navegando pelo extenso acervo videográfico das plataformas digitais. 

Onde vale citar, pela riqueza de seu acervo especialmente do melhor da dança contemporânea, o site alemão videotanz.ru com registros performáticos, fílmicos e virtuais completos, de reconhecidas cias mundiais, acompanhados das explicações informativas de Roman Makena, seu idealizador. Ou se você prefere um enfoque mais critico, incluídos aí trechos clipados em vídeo dos espetáculos analisados, há também a revista virtual francesa danse.org tendo como editor-responsável o ex bailarino, coreógrafo e crítico franco-americano Patrick Kevin O’Hara, diretor artístico da Cyberdanse Paris. 

Nesta última, há um segmento critico que torna possível uma conexão global com o panorama da dança contemporânea por meio de resenhas, acompanhadas de extratos visuais/cinéticos, titulada Dance Reviews, subdividida nas denominações Paris Dance Reviews, London Dance Reviews e New York Dance Reviews, todas assinadas por um especialista no tema, onde passei a responder, a convite de seu editor, pela mais recente delas, Brazil Dance Reviews.

Sem deixar de lembrar também que, hoje, por intermédio do You Tube podemos descortinar uma diversidade de criações experimentais em curta metragem ou mesmo espetáculos na íntegra de relevantes criadores ou, às vezes, de destacados grupos brasileiros de dança. O que possibilita, afinal, o bravo alcance numa ampla rede de democratização popular, através da imagem cinética e virtual, ao mágico mundo da dança.

SAIBA MAIS

Clique aqui para saber mais sobre Pulso, proposta cênico/fílmica de Gustavo Gelmini
Apresentação no Teatro do Oprimido (Paris) dias 13, 14 e 15 de outubro/2023 e no Festival Dança em Foco, 14 de dezembro de 2023, no Centro Coreográfico/ RJ.

Maya, peça filme, em cartaz desde fevereiro 2023, no Estação Net Rio/Botafogo.

Ensaios sobre Yves, de Patricia Niedermeier/Cavi Borges. Filme/ 2023. Estreia nos cinemas em breve.

PARA ASSISTIR

Clique aqui para assistir filmes de Evaldo Mocarzel sobre a São Paulo Cia de Dança 

Clique aqui para acervo de espetáculos/filmes sobre Dança Contemporânea

Clique aqui para assistir ao trailer de O próximo passo, filme de 2023 de Cédric Klapisch

A Dança das Serpentinas/ Loïe Fuller (divulgação)
A Dança das Serpentinas/ Loïe Fuller (divulgação)

 

Pas-de-Deux de Norman McLaren (divulgação)
Pas-de-Deux de Norman McLaren (divulgação)

 

Estudo Coreográfico, de Maya Deren (divulgação)
Estudo Coreográfico, de Maya Deren (divulgação)

 

Canteiro de Obras/ de Evaldo Mocarzel / Com a SPCD (divulgação)
Canteiro de Obras/ de Evaldo Mocarzel / Com a SPCD (divulgação)
Pulso / Gustavo Gelmini. 2023 (divulgação)
Pulso / Gustavo Gelmini. 2023 (divulgação)
Cena de ‘O próximo passo’, de Cédric Klapisch (reprodução)
O Próximo Passo, de Cédric  Klapisch. 2022 (divulgação)

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.