Por Arnaldo Leite de Alvarenga [Formação em Dança no Trans-Forma Centro de Dança Contemporânea (BH – MG); Leitura Corporal (Fisiognomonia) pelo Núcleo de Terapia Corporal (BH – MG). Graduação em Geologia (IGC – UFMG); Mestrado e Doutorado em Educação (FAE – UFMG) e Pós-Doutorado em Artes da Cena (UFOP). É docente das Graduações de Teatro, Dança e da Pós-Graduação em Artes – PPGArtes (EBA-UFMG). Coordenador do Grupo de Pesquisa Artes e Experiência Interartes na Educação (CNPq). Tem livros e artigos publicados no campo da Memória e História da Dança no Brasil]
O ato de recordar, puxar da memória o passado, pode ser entendido nem tanto como uma reprodução, mas antes como uma forma de criação que recoloca acontecimentos que, em sua origem primeira, aconteceram de outro modo. Reuni-los de forma organizada no presente, trata-se de reinterpretar e tentar dar sentido a um passado. Desse modo, quando pensamos em preservação dos atos dançantes, as ações encarnadas no corpo dos profissionais-intérpretes que dão vida à dança, não é possível desconsiderar que muitos outros atuantes também contribuem para a qualificação das poéticas envolvidas na concretização das muitas ações de dança. Assim, professores, coreógrafos, roteiristas, ensaiadores, figurinistas, cenógrafos, iluminadores, entre outros, fazem parte de um conjunto de trabalhadores da Dança, como um campo expandido, o que denomino Dança com “D” maiúsculo, uma área de conhecimento, com muitas frentes de trabalho para sua concretização.
Reconstruindo um passado dançante brasileiro
Mesmo aceitando sua incompletude, pode-se identificar em nosso país diferentes ações dedicadas a preservar, da efemeridade do ato dançante, aquilo que é passível de permanecer. Assim, identifica-se alguns exemplos como publicações de livros que remontam já aos anos iniciais da década de 1960, são eles: O ballet no Brasil (1962), da autora Edméa Carvalho, e História da dança, de Luís Ellmerich (1913-1988), publicado em 1964, produzidos no Rio de Janeiro e em São Paulo, respectivamente.
O livro de Edméa Carvalho, apresentado pela autora como “um guia coreográfico”, reúne uma série de espetáculos apresentados no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, onde libretos e fichas técnicas das montagens dão corpo ao texto, cobrindo um total de 72 produções, no período de 1930 a 1962. Já o livro de Ellmerich, apresenta um olhar resumido das danças de vários países, dedicando um maior número de capítulos ao Brasil. Perpassando as danças dos nossos povos originários, das influências de tradições ibéricas, bem como as danças de alguns países africanos, passam pelos bailados dos teatros municipais do Rio e São Paulo, finalizando com a criação do Balé do IV Centenário (1954), criado para a comemoração dos 400 anos da fundação de São Paulo.
A partir dos anos 1980, produções mais fundamentadas vêm à luz, com pesquisadores ligados a universidades brasileiras investindo nesse campo, ainda muito inexplorado. Desse modo, inicia-se um processo que, embora lento, vai preenchendo lacunas e conformando um quadro possível para a construção de uma memória apoiada em vidas de artistas, grupos, eventos e produções coreográficas em terras brasileiras.
Diferentes estados da União, além do eixo Rio de Janeiro/São Paulo, passam a contribuir com novas bibliografias. Inicialmente, destacam-se o Rio Grande do Sul, Pernambuco, Bahia, Ceará e Minas Gerais. A partir dos anos 2000 até o presente, juntam-se a eles outros estados, como o Pará, o Amazonas, Mato Grosso do Sul, Santa Catarina, Paraná, Goiás e Distrito Federal.
Ampliando as possibilidades
Destaco aqui, por sua importância como marco fundante e agregador, o projeto “Missão Memória da Dança no Brasil” (idealizado pelo autor desse texto), recebedor do Prêmio Klauss Vianna para Dança da Funarte em 2006 e 2009, resultando em dois importantes eventos nacionais: o I Encontro de Pesquisadores em Memória da Dança no Brasil – Quem somos? Onde estamos? Como trabalhamos? e a publicação da série de oito livros Personalidades da Dança em Minas Gerais, contendo o perfil biográfico de oito artistas-bailarinos, sete mineiros e um riograndense.
Sobre o I Encontro, durante três dias – de 25 a 27 de maio de 2007 –, nas dependências do Teatro Alterosa, reuniu-se um público formado por artistas-bailarinos, professores, estudantes de dança, frequentadores de salas de espetáculos e curiosos, todos interessados pela memória e cultura das danças brasileiras. O evento levou-nos a nos conhecermos por nossos nomes e ações desenvolvidas, bem como a divulgar informações compiladas sobre o tema. Estiveram presentes representantes do Amazonas, Ceará, Pernambuco, Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais.
Promovidos em julho de 2008 pelo Instituto Festival de Dança de Joinville, os Seminários de Dança são um marco nas amplas frentes de trabalho da Dança como Área de Conhecimento. Com um total de 12 edições que trataram de temas diversos, o evento abordou na sua primeira edição a História em Movimento – biografias e registros em dança. Nas palavras do pesquisador Roberto Pereira – um dos organizadores do seminário junto a Sandra Meyer e Sigrid Nora –, sobre esse tema: “As histórias da dança no Brasil e do Brasil são dois universos que começam, aos poucos, a se tocar (...) a dança cênica já se desenvolve há muito (...) a pesquisa sobre sua história e a iniciativa de preservar seus registros são ainda muito jovens”. No entanto, nos anos seguintes, novas iniciativas foram solidificando esse grande nicho de pesquisas. As publicações completas dos seminários podem ser acessadas em: https://festivaldedancadejoinville.com.br/livros-do-seminario/
Em 2012, entra em cena a plataforma Dança em Rede, da São Paulo Companhia de Dança, cujo espírito democrático abriu espaço para o que pode ser chamado de “enciclopédia e/ou dicionário colaborativo de dança”, como pode ser lido no seu texto de apresentação (acesso em: https://spcd.com.br/memoria/danca-em-rede/). Ela constrói um espaço que abriga e divulga memórias, a existência de escolas, companhias, universidades e profissionais ligados ao trabalho com a dança, não só de nosso país, mas de todo o mundo. Contando com a colaboração espontânea de pessoas que queiram, ali, registrar seus dados, esse formato se amplia na medida em que novas informações são inseridas, desenhando um quadro de infinita potência para a dança, em amplo espectro.
Em 2016, houve também um importante seminário produzido pela Bienal Internacional de Dança do Ceará de Par em Par (edição 2016), dentro do quadro do France Danse Brésil 2016, que reuniu 13 pesquisadores de 11 universidades brasileiras e francesas [Airton Tomazzoni (Centro Municipal de Dança – POA), Arnaldo Alvarenga (UFMG), Arnaldo Siqueira (UFPE), Beatriz Cerbino (UFF), Cássia Navas (UNICAMP), Eliana Rodrigues (UFBa), Henrique Rochelle (USP), Leonel Brum (UFC), Luciana Paludo (UFRGS) e Rosa Primo (UFC) e Isabelle Launay (Université Paris 8), Geisha Fontaine (Université Paris 1 Panthéon Sorbonne)] em dinâmicas públicas compostas por conferências, entrevistas e debates. O seminário, organizado pela pesquisadora Cássia Navas, teve início em São Paulo no Teatro Sérgio Cardoso e, em seguida, em Fortaleza, durante a Bienal. Desse empenho tivemos a publicação do livro impresso e ebook (de acesso livre), na qual os pesquisadores apresentaram os textos produzidos em português, francês e inglês, para uma maior difusão e acesso ao público interessado, como artistas, pesquisadores, gestores e plateias.
Já em 2017, por iniciativa do dançarino e pesquisador Rafael Guarato (UFG), realizou-se o I Seminário Internacional de História da Dança, sediado pela Universidade Federal de Goiás. O evento contou com 11 pesquisadores, brasileiros e internacionais, que abordaram, por diferentes caminhos e correntes, processos de historiografia da dança. No ano de 2022, aconteceu o segundo seminário, porém no modo remoto em função da Pandemia de COVID-19, que, em seu título, trazia a seguinte questão: “Quais as especificidades de se pensar e fazer historiografias em dança em lugares que passaram pelo processo colonial na condição de colônias?”. Reunindo pesquisadores(as) de países como Argentina, Angola, Brasil, Cabo Verde, Guatemala, Costa Rica, Moçambique e Venezuela, seus representantes dedicaram-se a examinar, por diferentes óticas, processos históricos, teorias, situações e acontecimentos permeados pelo processo colonial ou por suas consequências. As publicações podem ser acessadas em: https://revistas.ufrj.br/index.php/rbed/issue/view/2341
Em sua terceira edição, ocorrida em 2024, o seminário trouxe o tema das “muitas Histórias de Danças”, procurando dar vistas às muitas outras formas de danças subalternizadas pela imposição de estilos hegemônicos. Estão programadas duas publicações: no special issue da @dancechroniclejournal, previsto para novembro de 2025, e um dossiê na Revista Brasileira de Estudos em Dança em dezembro de 2025. Vamos aguardar. https://revistas.ufrj.br/index.php/rbed
Outro merecido destaque foi a formação de uma Rede de Pesquisadores denominada CoreoHistória (idealizada pela pesquisadora Cássia Navas), cujo interesse maior são as Histórias da Dança. Lançada em 28 de abril de 2021 (um dia antes da comemoração do Dia Internacional da Dança), com transmissão pelo YouTube, a rede, em seu formato inicial, teve como fundadores os professores: Airton Tomazzoni (CMD – POA), Arnaldo Alvarenga (UFMG), Arnaldo Siqueira (UFPE), Beatriz Cerbino (UFF), Cássia Navas (UNICAMP), Eliana Rodrigues (UFBa), Henrique Rochelle (USP), Leonel Brum (UFC), Luciana Paludo (UFRGS) e Rosa Primo (UFC). Nove desses pesquisadores, em mesa redonda, debruçaram-se sobre o tema “História da Dança: pedagogias possíveis”.
Pensar e organizar uma memória com vistas a efetivar uma historiografia para a dança brasileira é, antes de tudo, dispor-se a encampar uma vasta geografia territorial composta de uma imensa variedade de formas de expressão que reúne culturas e tradições muito diferentes entre si. Isto posto, há muito ainda a ser feito, mas considero que já alcançamos muitos pontos importantes, como os exemplos acima demonstram.
Para ler, ouvir e saber mais
- Pesquisa em Balé no Brasil – panoramas sobre história, ensino e cena, orgs. pelas dançarinas e pesquisadoras Eleonora Santos e Rousejanny Ferreira. Acesso em: https://editora.ifg.edu.br/editoraifg/catalog/book/48
- Pesquisa em Balé no Brasil – pedagogias, visibilidades negras e repertórios Eleonora Santos e Rousejanny Ferreira. Acesso em: https://repositorio.ufpel.edu.br/handle/prefix/9972?locale-attribute=es
- O Ballet Klauss Vianna em Belo Horizonte (1958-1962): caminhos de uma modernidade para o balé brasileiro. Acesso em: https://journals.openedition.org/rbep/816
- Tese de Doutorado: Klauss Vianna e o ensino de dança: uma experiência educativa em movimento (1948 – 1992). Acesso em: https://repositorio.ufmg.br/items/0a2e9854-5a74-42c0-8330-9f9226ca696f
- Diálogos em Dança e Educação, produzido pela SPED – São Paulo Escola de Dança. Acesso em: https://spescoladedanca.org.br/livros_sped
- CorpoMapa: dança e Educação, produzido pela SPED – São Paulo Escola de Dança. Acesso em: https://spescoladedanca.org.br/livros_sped
- Dança de rua: corpos para além do movimento (Uberlândia 1970 – 2007). Autor Rafael Guarato
- Uma poética para formação Trans-Forma; Centro de dança Contemporânea (Belo Horizonte 1071 – 1986). Autor Tarcísio ramos Homem.
- Dança e Política – estudos e prática. Orgs. Marila Vellozo e Rafael Guarato.
- Programa de Rádio - Dança para Ouvir e Pensar, veiculado pela Rádio UFMG Educativa – FM 104,5.
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