Música, teatro, ópera e literatura em um mundo quase no fim

por Luciana Medeiros 09/04/2023

Chega ao público na terça-feira, dia 11, um projeto que reúne música, teatro, ópera, performance, cinema e literatura – na forma de livro. Realejo de vida e morte, roteiro de Jocy de Oliveira, e Realejo dos mundos, romance de Adriana Lisboa, foram reunidos num belo volume bilíngue editado pela Relicário, com o script de Jocy – além de partituras e fotos – e a narrativa de Adriana. O lançamento carioca é na Livraria da Travessa Ipanema. Em São Paulo, a festa é na Livraria da Travessa de Pinheiros, no dia 19 de abril, com bate-papo reunindo as autoras e a prefaciadora Josélia Aguiar.

É uma realização tremendamente singular. O roteiro é inspirado no livro, que é inspirado em obras e na própria linguagem de Jocy. As duas artistas, de gerações distintas – Adriana tem 52 anos, Jocy completa, no próprio dia 11, incríveis 87 – construíram esse círculo de inspiração mútua que começou quando Adriana, jovem, viu as apresentações de Fata Morgana e da própria Realejo dos Mundos (1987), de Jocy. E nunca mais esqueceu.

Em 2020, ela colocou um ponto final no romance que construiu inspirado pela obra de Jocy. E enviou o manuscrito para a compositora, que Adriana não conhecia pessoalmente.

“Adriana e sua musicalidade literária me impactaram, na releitura de minha obra”, conta Jocy. “Fiquei tremendamente mexida pelo livro e decidi fazer minha segunda ópera cinemática [depois da premiada Liquid Voices]. Ela me deu carta branca.” Mesmo atravessado pela pandemia, o projeto estava de pé pouco depois. Em julho de 2022, Jocy produziu em São Paulo um concerto cênico com trechos do roteiro e algumas das peças musicais do script (leia aqui entrevista concedida na época à Revista CONCERTO).

“Na verdade, eu estudava na Pro-Arte e me deparei com a obra de Jocy aos 15 anos”, revela Adriana, referindo-se à tradicional escola de música no Rio de Janeiro, inaugurada em 1957 e fechada  54 anos depois. “Foi por acaso: fui à Sala Cecilia Meireles para um recital de violão. Errei a data... e percebi que tinha entrado num universo paralelo e maravilhoso: era um concerto de John Cage, com Jocy. Saí de lá mudada. Algum tempo depois, fui igualmente impactada pelas performances Fata Morgana e Realejo dos Mundos: saí transfigurada, mal acreditando que era possível fazer arte daquele jeito, com tamanha liberdade na concepção artística.” 

Nos dois Realejos, o cenário é o de uma região devastada, pós-hecatombe – “não se sabe qual, se atômica, ambiental”, explica Jocy. Os personagens Flor e Muri relembram a vida repleta de música que um dia tiveram enquanto escalam dias estranhos. Nesse lugar, onde o oceano vai devorando a cidade, eles encontram um piano abandonado. Afinal de contas, eles estão sozinhos, mas não estão. Dialogam com seus fantasmas, suas lembranças, revivem as experiências artísticas que tiveram. 

“O filme prevê cinco locações e uma delas é Atafona, a cidade do Norte Fluminense onde o mar avançou e erodiu as construções”, explica Jocy; “há um incrível mosteiro perto de Niterói, ruínas preservadas do século XVI, restauradas pela Petrobras em meio a um descampado; há o teatro que eles relembram...”. Fantasmas fazem parte das duas narrativas, mas para a dramaturgia Jocy montou um coro feminino, à maneira dos coros gregos, que conduz em parte a história, profetiza, reafirma. “Estamos em dias de angústias muito profundas: a inteligência artificial se apropriando de conteúdo; a destruição do meio-ambiente, já num ponto sem retorno; e a guerra atômica, que nunca deixou de ser ameaça.”

O formato literário de Realejo dos Mundos não é o convencional. “Meu texto foge, deliberadamente, dos padrões, dos formatos novela, romance”, aponta Adriana, que mora em Austin, nos EUA. “A origem desse texto foi a vontade de produzir uma obra que se remetesse a uma grande artista brasileira e Jocy foi a primeira escolha. O resultado da adaptação para o cinema é incrível. Ela tem ousadia como poucos. Queria que fôssemos gravar elefantes em Botswana, por exemplo”, conta Adriana, referindo-se a uma imagem do romance, os elefantes à beira da morte andando em círculos. “Ela colocou no início da ópera o som das ostras, que um cientista gravou. Isso é voar muito alto. E trabalhar com alguém que sonha com essa magnitude, que ousa sem inibições, é um privilégio. Eu fiquei muito feliz.”

A música tem um papel muito nítido no texto – é a ferramenta “de salvação num fim do mundo”, continua Adriana. “Essa alegoria de um mundo que acaba, um mundo que pode ser o real ou interno, psicológico, encontra a música como ponto de contato com o que importa”. O livro foi escrito antes da pandemia, mas se encaixa como uma luva no que aconteceu. “E também fala dos anos tão duros, politicamente, que passamos. A música é desejo de salvação e é ao mesmo tempo a resistência." Adriana coloca no balaio de admirações a resistência de Jocy num mundo tão misógino quanto o dos compositores. “Mulher, compositora e ainda por cima de ópera, no Brasil? Céus!”, ri a escritora.

Apesar da busca de financiamento para o filme prosseguir, o trabalho de concepção de Jocy continua avançando: “Pelo menos esse ano já tivemos liberados os projetos – ainda bem que a situação política mudou! Vamos filmar com realidade aumentada, com as melhores condições técnicas, de novo com a Visom, do Carlão [Carlos de Andrade]”. 

O lançamento do livro no Rio de Janeiro terá mesa com debate mediado pelo jornalista Arthur Dapieve e uma mini-performance com quatro sopranos, Gabriela Geluda, Claudia Alvarenga, Doriana Mendes e Luciana Costa Et Silva, como não podia deixar de ser em um evento de duas artistas da música e das letras. Afinal, a última frase tanto do livro quanto do roteiro é: “No princípio, era o som. No fim, será o som também”. 

Veja mais detalhes sobre o lançamento no Roteiro do Site CONCERTO

Cena da performance de 'Realejo de vida e morte' no Sesc Pompeia [Divulgação/João Caldas]
Cena da performance de 'Realejo de vida e morte' no Sesc Pompeia [Divulgação/João Caldas]

 

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