Buchbinder apresenta Beethoven superlativo na Sala São Paulo

por Nelson Rubens Kunze 22/04/2023

Recital com sonatas para piano revela a grande arte do compositor alemão

Não existem interpretações finais ou definitivas. Como todos os grandes mistérios de nossa existência, a música contém camadas e dimensões que se revelam sempre de maneira nova, dependendo da interpretação de cada artista e de nós mesmos, naquele determinado momento em que a escutamos. Ainda assim, para mim, o recital do pianista Rudolf Buchbinder com sonatas de Beethoven na Sala São Paulo, que abriu a temporada 2023 do Mozarteum Brasileiro, alcançou algo bem próximo do definitivo. Foram momentos da mais alta qualidade artística, tanto do ponto de visto técnico quanto do estilístico. 

Assisti ao recital de terça feira, dia 18 de abril, em que Buchbinder tocou a Sonata nº 8Patética, a Sonata nº 14Ao luar, a Sonata nº 10 e a Sonata nº 21, Waldstein (na quarta-feira, o pianista tocou ainda as sonatas nº 17 A tempestade, nº 18 A caça, nº 6 e nª 23 Appassionata). Até a escolha das sonatas e a ordem em que foram apresentadas pareceu-me ideal. A Patética, a Ao luar e a Waldstein são famosíssimas obras-primas do repertório de todos os tempos. 

As três primeiras sonatas apresentadas (Patética, Ao luar e nº 10) pertencem à primeira fase criativa de Beethoven, que ainda está voltada à tradição do Classicismo. Elas foram escritas em um intervalo de apenas 3 anos – a Patética é de 1798, a Sonata nº 10 de 1799 e a Ao luar de 1801. Já a Waldstein, a maior sonata de Beethoven até então, é de 1804, mesmo ano da Sinfonia nº 3, Heroica, tida como o um dos grandes marcos da transição do Classicismo ao Romantismo. Também a Waldstein já exibe sinais desse novo mundo e estabelece novos padrões para a composição pianística (comentário à parte, em 1804 Beethoven tinha 34 anos).

Foi magistral o recital de Rudolf Buchbinder tocando as sonatas de Beethoven na Sala São Paulo. Aos 76 anos, o pianista austríaco é reconhecido no mundo por sua dedicação à obra de Beethoven, de quem lançou, em 2021, pelo selo Deutsche Grammophon, a integral das 32 sonatas e dos cinco concertos para piano. Leio no programa que o pianista já tocou o ciclo completo das sonatas mais de 60 vezes ao redor do mundo (não creio que a integral de Beethoven tenha sido tocada 60 vezes no Brasil). Ali também consta que o pianista possui nada menos do que 39 (!) edições diferentes e completas das sonatas para piano.

Assim, como ouvimos no recital, não é de se estranhar que Buchbinder seja dono absoluto das obras. Tranquilo e impassível, com uma concentração que parece inabalável, a música brota de seus dedos com todo seu potencial artístico, desvelando a essência da criação beethoveniana. Buchbinder toca Beethoven com uma naturalidade como se o estilo lhe pertencesse, é como se fosse ele o autor do próprio estilo – bem poucos intérpretes transmitem essa autoridade. Ele constrói a interpretação de forma transparente, em que cada parâmetro musical contribui a sua maneira para estabelecer as características de cada motivo. E Buchbinder sabe explorar os recursos do piano moderno: é possível discernir melodias de timbres, tal a riqueza de sua paleta sonora, e as articulações que emprega são de um refinamento incrível, que, contudo, nunca soa afetado ou exagerado.

A individualidade de Buchbinder se expressa também nos andamentos, sempre orgânicos e equilibrados. E o que falar dos lindos fraseados, da agógica, da homogeneidade do toque e das escalas, dos múltiplos níveis de dinâmica? E da compreensão do todo de cada uma das sonatas?

Para ver a Monalisa, a gente tem que ir ao Louvre em Paris. Se a gente quiser conhecer o David de Michelangelo, a gente viaja a Florença. Já as sonatas para piano de Beethoven, a gente pode curtir aqui mesmo, com Rudolf Buchbinder na Sala São Paulo...

Rudolf Buchbinder é aplaudido na Sala São Paulo (Revista CONCERTO)
Rudolf Buchbinder é aplaudido na Sala São Paulo (Revista CONCERTO)

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.