De um drama sombrio, sinais otimistas para o futuro

Depois de tantas variantes e reviravoltas, é complicado não ter um pé atrás quanto a momentos de otimismo na pandemia que assola o planeta. Porém, igualmente difícil é conter a sensação de euforia quando se vê uma montagem de ópera adiada pela disseminação da doença chegar ao palco de um dos mais belos teatros do país, e com casa cheia (os protocolos restringiam a presença do público a 85%, com utilização de máscaras e apresentação de “passaporte da vacina”).

No último sábado, dia 25, o Theatro da Paz, de Belém, de arquitetura encantadora e acústica miraculosa, estreou Il tabarro, de Puccini – a récita também foi transmitida pela internet. Atmosfera festiva: para além dos 20 anos do Festival de Ópera do Theatro da Paz, celebrava-se a superação pessoal de um elenco 100% brasileiro, do qual quase todos os membros, em algum momento da pandemia, chegaram a contrair Covid-19.

Sim, a ópera é uma atividade internacional e cosmopolita. Sim, todo tipo de intercâmbio com outros países é bem-vindo e, assim como nos orgulhamos quando nossos cantores brilham no exterior, aplaudimos com gosto quando talentos estrangeiros reluzem em nossos palcos. Porém, a pandemia privou nossos artistas de trabalho por tempo demais e, quando começamos a ensejar uma retomada, nada mais justo que eles sejam privilegiados nesse momento.

Se, em ano de Olimpíadas, a palavra mais martelada em nossos ouvidos foi “superação”, não há como não se emocionar com o exemplo do barítono Rodolfo Giuliani. Há pouco mais de dois meses, ele teve alta hospitalar, após 50 dias internado com Covid-19. Contudo, não é necessária nenhuma condescendência ao analisar seu desempenho como Michele, o marido traído da violenta trama de Puccini. Sua voz ressoava com a potência e o timbre rico e glorioso de sempre, além do costumeiro vigor cênico.

Milagre de outra natureza é Eliane Coelho (Giorgetta). Sim, uma cantora de 70 anos pode muito bem fazer o papel de uma moça de 25. Para além de todas as qualidades superlativas que a fizeram internacionalmente aclamada, causa estupefação o fato de a voz de Coelho conservar todo o frescor e colorido, na gama completa de sua tessitura. É justo que, sentindo-se seguros para viajar, amantes da arte lírica peregrinem por onde ela cantar, para acompanhar este fenômeno. E que nossas casas de ópera incluam em suas programações pelo menos um título do qual ela seja a protagonista.

A trinca protagonista foi fechada por Hélenes Lopes (Luigi), paraense com interessante timbre de tenor spinto. Equilibrado, o elenco demonstrou sua solidez também nas partes coadjuvantes. Vale destacar, sobretudo, a solidez vocal, personalidade e desenvoltura cênica do par formado pelo Talpa de Fellipe Oliveira e pela Frugola de Carolina Faria, que, com o Tinca de Antonio Wilson, formavam uma espécie de contraponto ligeiro ao peso do triângulo amoroso central.

Estreada no Metropolitan, de Nova York, em 1918, como primeiro item da trilogia operística chamada por Puccini de Il Trittico, Il tabarro recorre ao gênero macabro que ficou conhecido pela expressão francesa grand-guignol. A encenação de Jena Vieira revelou-se sóbria e fiel às indicações do libreto de Giuseppe Adami. No momento culminante da tensão (quando Michele oculta sob o capote que dá título à ópera o cadáver de Luigi, amante de sua esposa Giorgetta, que ele acaba de assassinar), o público explodiu em gargalhadas. Riram de nervoso? Ou foi sintoma de uma sociedade em que a violência foi naturalizada?

Il Tabarro pode ser visto também como uma floração tardia do “verismo”, pois a trama em que a brutalidade das condições sociais explode em resolução violenta de conflitos amorosos ecoa os mais célebres títulos desta escola, como Cavalleria Rusticana, de Mascagni, e I Pagliacci, de Leoncavallo. Naquela que talvez seja a mais concisa e objetiva de suas partituras, Puccini manipula o leitmotiv com a maestria de sempre e, empregando uma instrumentação imaginativa, confere à orquestra a tarefa de ditar o ritmo e conduzir a narrativa. No pódio, Gabriel Rhein-Schirato regeu a ópera com seu habitual amor e atenção às vozes, sabendo ainda trazer o caráter “ondulante” da música que reflete não apenas o rio Sena (ambiente dessa história de barqueiros e estivadores), como a própria instabilidade e desequilíbrio dos personagens.

Como boa notícia adicional, encontrava-se na plateia, na noite de estreia, o maestro Luiz Fernando Malheiro, diretor artístico do Festival Amazonas de Ópera, de Manaus – uma presença que sinaliza para a cooperação entre as duas grandes casas de ópera do Norte do Brasil em anos futuros. Os tempos atuais são tão bizarros que o sinal mais otimista lançado na direção do porvir vem da encenação de uma ópera sombria, com paixões bestiais e assassinato.

Rodolfo Giuliani em cena de 'Il tabarro', de Puccini [Divulgação/Agência Pará]
Rodolfo Giuliani em cena de 'Il tabarro', de Puccini [Divulgação/Agência Pará]

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.