Escuta compartilhada e reverência à criação musical emolduram o recital Retratos, da pianista Lidia Bazarian

Apresentação faz parte da série Música Inaudita, que traz recitais mensais para o Ágora Teatro, em São Paulo

Aos domingos São Paulo se fantasia de cidade cordial. As britadeiras cessam, o trânsito flui, os artistas e artesãos tomam as ruas e as pessoas passeiam devagar. Difícil chamar a Avenida Paulista de centro financeiro quando, em vez de carros, bicicletas e crianças circulam em meio a uma neblina perene de palo santo. 

A Rua Treze de Maio e a Avenida Brigadeiro Luís Antônio, duas vizinhas da grande avenida, dão acesso fácil ao Ágora Teatro, que está vizinho à obra da linha laranja do metrô – bicho que dorme aos domingos, ainda bem. 

O Ágora compõe a constelação de espaços de resistência do teatro paulistano concentrada no bairro do Bixiga/Bela Vista. Estão vizinhos o Teatro Sérgio Cardoso, o Ruth Escobar, o Oficina. O palco, em formato de arena, soma cerca de 50 lugares. O ambiente é intimista e proporciona a experiência de vivenciar práticas artísticas de perto. 

Mas não foi uma peça teatral que esteve em cartaz no último domingo, e sim um dos recitais da série Música Inaudita, curada pelo contrabaixista Alexandre Rosa. No concerto deste mês a pianista Lidia Bazarian propôs ao público um programa com obras de Valéria Bonafé, Alexander Scriabin, Silvio Ferraz, Marisa Rezende, Clara Schumann, Marcos Branda Lacerda e Luciano Berio.

Certamente uma das pianistas-chave para se conhecer o repertório contemporâneo, Lidia Bazarian faz parte de uma tradição de instrumentistas dedicados a difundir a música nova. Um privilégio poder ouvi-la de perto, ainda mais entendendo que boa parte do que foi tocado é, de certa maneira, também criação dela – afinal, peças como Ressonâncias, de Marisa Rezende, e Tátil, de Valéria Bonafé, dão maior abertura para o intérprete, que pode moldar gestos, frases ou andamentos de acordo com seu próprio entendimento da obra. 

Há certo encanto em subir a Avenida Brigadeiro Luís Antônio ainda ensolarada (é pouco mais de meio-dia) sabendo que ainda há vida musical fora do circuito comum das nossas grandes salas de concerto e que, procurando, é possível encontrar eventos especiais como esse. Basta um espaço generoso de escuta e performance para que a arte aconteça

Ainda assim, é necessário aliar liberdade e controle mantendo respeito à escrita, o que é uma receita difícil de acertar. Está claro que Lidia Bazarian tem na ponta dos dedos a dialética entre desenvoltura e racionalização, entre improvisação e planejamento, demonstrando uma familiaridade incomum com esse repertório, que, revisitado por ela, se mantém vivo e amadurece para além de suas estreias.  

Bazarian teve a iniciativa de ilustrar todas as obras com comentários gravados, que eram reproduzidos antes de cada uma delas. Descrições como a da peça Agar, de Marcos Branda Lacerda, que menciona como inspiração o poema Navio negreiro, de Castro Alves, e a referência de Silvio Ferraz aos quadros de Paul Klee e Leonardo da Vinci como pontos de partida da peça Trópicos das repetições ajudaram a iluminar a escuta, fornecendo ferramentas de compreensão para aqueles ouvintes não tão familiarizados com as poéticas musicais contemporâneas. 

A escolha não só indica generosidade com o público, mas também uma certa reverência ao processo criativo, a partir do entendimento de que a arte, longe de ser espontânea ou dissociada da realidade, é “um impulso desencadeado pelas buscas, reflexões, pesquisas sonoras, expressão de sentimentos ou uma dúvida profunda”, como Bazarian aponta em seu texto de apresentação. Não à toa a pianista nomeou o recital de Retratos. 

Enriquece a escuta também entender o contexto de vida daqueles compositores dos quais não temos documentados os processos criativos, como é o caso de Clara Schumann. Na época da composição de seus Romances op.21 (dos quais Bazarian executou o primeiro), ela, que tinha acabado de ter seu oitavo filho, enfrentava a internação do marido, Robert Schumann, e contava com o apoio do amigo de longa data, Johannes Brahms, durante toda a situação – o opus foi dedicado a ele. 

Já de Alexander Scriabin, de quem Bazarian interpretou três dos Prelúdios op.11, temos acesso a uma auto-definição clara: “Eu crio o mundo através do jogo dos meus humores, com meus sorrisos, meus suspiros, minhas carícias, minha raiva, minhas esperanças, minhas dúvidas”.

É interessante que Lidia Bazarian tenha trazido essas histórias para o mesmo campo sensível das obras que executou: a escuta. As palavras, faladas para todos em vez de lidas por cada um em tempos diferentes (como seria se estivessem impressas em notas de programa), mantiveram o público unido, potencializando a experiência compartilhada do recital.

Há certo encanto em subir a Avenida Brigadeiro Luís Antônio ainda ensolarada (é pouco mais de meio-dia) sabendo que ainda há vida musical fora do circuito comum das nossas grandes salas de concerto e que, procurando, é possível encontrar eventos especiais como esse. Basta um espaço generoso de escuta e performance para que a arte aconteça.

A pianista Lidia Bazarian durante recital no Ágora [Divulgação]
A pianista Lidia Bazarian durante recital no Ágora [Divulgação]

 

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