Ópera de Leonardo Martinelli baseada em Plínio Marcos ganhou versão pocket apresentada no Teatro Sérgio Cardoso com direção de Leo Lama, evidenciando novos detalhes da rica escrita do compositor
Para uma peça claustrofóbica, uma ópera claustrofóbica: recriada em versão “pocket” na última segunda-feira, em São Paulo, a ópera Navalha na carne, de Leonardo Martinelli, ganha ainda mais pujança em sua materialização musical da mais emblemática peça de Plínio Marcos (1935-1999). Relembrando: em abril de 2022, o Theatro Municipal de São Paulo, por iniciativa do maestro Roberto Minczuk, levou à cena a primeira encomenda operística de sua história centenária. Em um programa duplo, dedicado a adaptações operísticas de peças de Plínio, Navalha foi montada ao lado de Homens de papel, de Elodie Bouny. Passaram três anos, e Paulo Abrão Ésper, da Cia. Ópera São Paulo, promoveu, em Araras, no último sábado (dia 7), o segundo Encontro de Ópera Brasileira. No programa, O menino e a liberdade, de Ronaldo Miranda, com libreto de Jorge Coli, e Navalha na carne. Para celebrar os 90 anos de Plinio, esta última, por iniciativa da Apaa (Associação Paulista dos Críticos de Arte), foi reprisada no dia 9, no Teatro Sergio Cardoso – onde o autor foi velado, em 1999.
Para a ocasião, Martinelli providenciou uma versão da partitura apenas com canto e piano. Claro que dá pena abrir mão da inventiva paleta orquestral do compositor, que, além de prever um “acorde-navalha” que soa para marcar a presença do objeto e o extremo da situação dramática envolvida, associou instrumentos específicos (os mais graves da família das madeiras) a cada um dos personagens: clarinete baixo para Neusa Sueli, contrafagote para Vado e corne inglês para Veludo. Além disso, como João Luiz Sampaio assinalou em sua crítica na época (leia aqui), na estreia da ópera “Roberto Minczuk soube conduzir com raro sentido dramático” a partitura, “à frente de uma Orquestra Sinfônica Municipal capaz de nos relembrar do porquê é um dos maiores conjuntos sinfônicos brasileiros”.
Por outro lado, como Leo Lama assinala no texto de programa da montagem do Sergio Cardoso, Navalha na carne (1967), que chegou a ser proibida pela ditadura militar, é uma “peça teatral inovadora, sintética e contundente”, e muito de sua contundência e inovação vêm do seu caráter sintético: Oswaldo Mendes, em Bendito Maldito – Uma biografia de Plínio Marcos, conta que “a peça era curta demais. Daria uma hora de espetáculo, se tanto”. O que hoje é uma virtude da peça na época constituiria um problema, já que “o público se sentiria logrado e pediria o dinheiro de volta, pois o padrão das temporadas teatrais exigia peças de dois atos no mínimo – como Dois perdidos numa noite suja – e duas horas de duração”.
Navalha não tem segundo ato. Como não tem fuga. Trata-se de um drama claustrofóbico, marcado pela tensão entre o cafetão Vado, a prostituta Neusa Sueli e a travesti Veludo em um “sórdido quarto de hotel de quinta classe”, como diz a rubrica da peça de Plínio. Na produção de 2022, dirigida por Fernanda Maia, a amplitude dos cenários de certa forma diluía a sordidez do ambiente e a atmosfera carregada da peça. Já na concepção de Leo Lama não há espaço para respirar.
Filho de Plínio Marcos e Walderez de Barros, Lama prorrompeu espetacularmente com pouco mais de 20 anos de idade, em 1989, como autor da premiada peça Dores de amores. Desde então, vem se aprimorando como um dramaturgo que conhece todos os segredos da carpintaria teatral e um diretor que aposta na força da palavra e na economia dos recursos cênicos. Por exemplo: em sua impactante Jerusalém de Nós, encenada em 2023 no Teatro B32, em São Paulo, e no Festival Artes Vertentes, em Tiradentes, colocou duas atrizes praticamente imóveis para encenarem o drama do conflito entre israelenses e palestinos.
Na sala Paschoal Carlos Magno, sua aposta não foi menos radical: em cena, além do piano (em que Karin Uzun executava com fluência a intricada escrita de Martinelli), havia apenas uma cadeira, em cima e em torno da qual atuavam os três personagens.
Um foco de luz incidia apenas onde estava a cadeira, cortando a silhueta dos cantores como a navalha do título. Por vezes, víamos seus corpos, por vezes, apenas os rostos, hieraticamente reduzidos a máscaras kabuki
A ópera foi precedida pelo conto 25 homens, que integra aquele que talvez seja o melhor livro de prosa de Plínio, Inútil canto e inútil pranto pelos anjos caídos, declamado pelo ator Rogério Bandeira com uma intensidade que prefigurava o que estava por vir: a tragédia dos 25 encarcerados em uma diminuta cela de prisão cuja dignidade é cotidianamente aviltada até serem consumidos por um incêndio anuncia as misérias vividas pelos igualmente enclausurados Vado, Neusa Sueli e Veludo.
A ópera foi encenada na menor das salas do Sergio Cardoso (com apenas 149 lugares), e a concepção de Lama optou por dar diminui-la ainda mais. Um foco de luz incidia apenas onde estava a cadeira, cortando a silhueta dos cantores como a navalha do título. Por vezes, víamos seus corpos, por vezes, apenas os rostos, hieraticamente reduzidos a máscaras kabuki. Sem o desvio de elementos externos, tudo ficou concentrado na força das palavras (e palavrões) do texto de Plínio, na brutalidade e lascívia das interações dos personagens (explicitadas em um gestual desprovido de subterfúgio). Afinal, como afirmou o crítico Anatol Rosenfeld na época da estreia da peça, Navalha, “a denúncia dramática de um autor que ama o homem”, é “um ato de purificação justamente pela sua violência agressiva”.
Violência agressiva presente também na música de Martinelli. Ao adaptar o texto de Plínio, além de manter-lhe a abundância de palavrões, o compositor fez alterações muito pequenas, cortando uma ou outra repetição e atualizando pontualmente este ou aquele vocábulo. Sem terem que “concorrer” com o volume de uma orquestra sinfônica, os cantores podiam se focar ainda mais no fraseado e dinâmica, utilizando-os como recurso expressivo, assim como na articulação inteligível do texto. Ficou mais clara, por exemplo, a engenhosidade com que Martinelli organizou os intervalos no notável contraponto entre as vozes no trio entre Vado, Neusa e Veludo.
O formato pocket é um convite à viagem, às turnês, à circulação. Essa é uma 'Navalha' para rodar o Brasil
A vocalidade alterna-se entre canto, recitativo e fala, concedendo amplas possibilidades expressivas aos intérpretes – que as aproveitaram sobejamente. Em uma sábia mescla de gerações, do elenco original veio o tenor Fernando Portari (Vado), levando ao palco não apenas a “intensidade e força” que “não para de encontrar novas camadas de violência, ódio, na fala e no canto” que Sampaio destacou em sua crítica da estreia da ópera, como ainda a vivência de uma geração que viu Plínio atuar, encontrava-o à noite no restaurante Gigetto e nas portas dos teatros paulistanos, vendendo seus livros.
A seu lado, foram escaladas duas jovens vozes promissoras. O barítono Fulvio Souza surpreendeu pela desenvoltura cênica como Veludo. Mas a estrela da noite foi a soprano Cintia Cunha. Afinal, como o ator Oswaldo Mendes disse-me ao final do espetáculo, Navalha na carne é Neusa Sueli. O cerne da peça é o drama da prostituta humilhada e ofendida. E Cintia encarnou e transmitiu esse drama de forma magnífica, tanto do ponto de vista vocal, quanto do cênico.
Se (para citar uma frase de Mendes mencionada por Sampaio no texto de programa da ópera), Plínio retrata “gente abandonada à própria sorte e a uma solidão sem fim, à margem, invisível, sem voz nem vez”, a ópera Navalha na carne foi a vez em que esses párias da sociedade tiveram muita voz. E o formato “pocket” é um convite à viagem, às turnês, à circulação. Essa é uma Navalha para rodar o Brasil.
![Karin Uzun, Fulvio Souza, Cinthia Cunha e Fernando Portari em cena do espetáculo [Divulgação]](/sites/default/files/inline-images/w-navalha_1.jpeg)
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