Há muitas maneiras de se começar uma crítica, e nem sempre é possível ser tão direto e objetivo. No sábado à noite, porém, foi: o concerto que a Filarmônica de Minas Gerais apresentou na Sala São Paulo, na programação do Festival de Campos do Jordão, revelou uma orquestra madura, sólida, tanto nas intervenções de seus solistas como em conjunto. Uma apresentação histórica.
O programa começou com a abertura da ópera Le Roi D’Ys, de Lalo. A qualidade dos solos do clarinete de Marcus Julius Lander e do violoncelo de Philip Hansen, a atenção às dinâmicas, a percepção da arquitetura da obra: os músicos pareciam artesãos, construindo a música com Mechetti, sem pressa, revelando a personalidade de cada naipe – e o equilíbrio de conjunto tão raro de se atingir.
Ouvindo o Lalo, tem-se a impressão de que a identidade sonora da filarmônica preza acima de tudo a precisão, com um som afiado que não significa menor expressividade mas, pelo contrário, uma intensidade que vem do detalhe, do diálogo de timbres, e da clareza na construção de cada passagem. E, nesse sentido, o violoncelista Viktor Uzur, que tocou o Concerto nº 1 de Saint-Säens, pareceu o solista ideal para o grupo.
A sonoridade que ele extrai do violoncelo nunca é derramada – e dá ao estilo declamatório de Saint-Säens um caráter particular, sem exageros. Isso ficou claro em especial no segundo movimento, no minueto em que conversa com as cordas, quando a filarmônica mostrou sua versatilidade, assumindo o papel de acompanhamento como se fosse uma enorme formação camerística. Um momento como esse, tão fugaz, tinha tanta poesia que já teria valido a apresentação.
Não há dúvida: ao completar 15 anos de atividades, a filarmônica é um edifício sólido, cuja arquitetura se impõe na nossa paisagem musical
Em seguida, a Sinfonia nº 3 de Rachmaninov. Ela é um caso interessante. Tem tudo aquilo que esperamos de uma obra do autor: uma orquestração repleta de coloridos, o tônus lírico do romantismo tardio, os contrastes entre emoções muitas vezes conflitantes. Mas há ao mesmo tempo uma austeridade que parece relativizar cada certeza colocada pela música.
Conciliar esses dois universos não é fácil, mas Mechetti fez exatamente isso, com a filarmônica jamais perdendo o foco e o caminho que se propôs a construir. E, claro, que prazer é ouvir os metais com sua expressividade segura, as madeiras capazes de coloridos surpreendentes, as cordas atentas às dinâmicas – e os solos tão delicados e sofisticados da spalla Libby Fayette ou da flautista Cássia Lima.
Mechetti costuma referir-se ao trabalho de uma orquestra como uma construção, em que cada tijolo precisa ser colocado na hora certa e com cuidado. Esse processo nunca acaba. Mas não há dúvida: ao completar 15 anos, a filarmônica é um edifício sólido, cuja arquitetura se impõe na nossa paisagem musical.
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