Na “Aida” do Theatro Municipal de São Paulo, tempos de guerra

por João Luiz Sampaio 06/06/2022

O Brasil vive hoje uma quarta onda da Covid-19, com o aumento no número de casos e internações provocadas pela doença. Nesse contexto, o Theatro Municipal de São Paulo tornou-se, nas últimas semanas, um microcosmos do que vem acontecendo país afora.

Ao longo dos ensaios da produção de Aida, de Verdi (que já havia sido cancelada no início de março de 2020 por conta da pandemia), cerca de trinta cantores do Coro Lírico e do Coral Paulistano foram infectados, assim como trinta músicos da Orquestra Sinfônica Municipal e cinco membros da equipe de produção. 

Perante essa realidade, foram retomadas precauções como o uso de máscaras pelos coralistas e pelos músicos da orquestra, com exceção dos instrumentistas de sopros. E a testagem periódica dos cantores solistas. Ainda assim, como foi anunciado pelos alto-falantes antes das récitas de sábado e domingo, dias 4 e 5, foram necessários ajustes e readequações para que o espetáculo pudesse chegar ao palco.

Eles foram visíveis. Na grande cena coral do segundo ato da ópera, por exemplo, havia pouco mais de quarenta membros dos corais em cena (segundo informações do site do Municipal, o Coro Lírico tem atualmente 88 integrantes; o Paulistano, 45). 

No sábado, após o primeiro ato, o tenor Paulo Mandarino, intérprete de Radamés, precisou ser substituído por Marcelo Vanucci por conta de um mal-estar atribuído à recuperação da Covid-19 – para quem já teve a doença, dá para imaginar o esforço que foi para ele estar no palco durante todo o primeiro ato e suas exigentes demandas vocais.

Dois elencos, duas histórias

Em Aida, ópera de 1871, estão em guerra o Egito e as forças etíopes. Escravizada, a princesa Aida apaixona-se pelo líder do exército egípcio, Radamés, por sua vez alvo de afeição da princesa de seu povo, Amneris. O pai de Aida, Amonasro, pede a ela que, se aproveitando da relação com Radamés, o ajude a descobrir quais os planos dos inimigos. Ela obedece. Os dois são flagrados por Amneris. O soldado é preso e condenado à morte. Aida escapa, mas junta-se a ele em sua câmara de morte. Enquanto morrem, Amneris pede paz. E o coro exalta a crença nas divindades egípcias.

Dois elencos se revezam na produção. No sábado, dia 4, Marly Montoni foi Aida; Vanucci, Radamés; Andreia Souza, Amneris; e Douglas Hahn, Amonasro. No domingo, dia 5, os papeis foram vividos por Priscila Olegário, David Pommeroy, Ana Lucia Benedetti e David Marcondes. Savio Sperandio (Ramfis), Orlando Marcos (Faraó), Elayne Caser (Sacerdotisa) e Caio Duran (Mensageiro) cantaram em ambas as récitas. 

Priscila Olegário em cena de 'Aida' [Divulgação/Stig de Lavor]
Priscila Olegário em cena de 'Aida' [Divulgação/Stig de Lavor]

Priscila Olegário e Marly Montoni constroem Aidas diferentes. Olegário incorpora o senso de tragédia da personagem, o que ela definiu em uma entrevista como “afeto triste” que permeia até mesmo os momentos de maior confronto com a realidade à sua volta. Seu "Ritorna Vincitor" é construído de nuances, que contrastam com a explosão de algumas passagens (ainda que, com o tempo, a soprano possa ganhar com maior refinamento no controle dos extremos da voz). Marly Montoni, por sua vez, em que pese a falta de peso na voz nas regiões mais graves, é uma Aida de corte verista, nunca frágil, mesmo em passagens de maior introspecção – uma ideia que está no seu olhar, no gestual, na movimentação sobre o palco. A diferença entre as duas fica particularmente visível no dueto com Radamés no terceiro ato. Olegário parece flutuar entre o dever com sua pátria e o amor por Radamés; Marly Montoni lança mão da sexualidade e do desejo para convencer o amante a segui-la e entregar os planos dos soldados egípcios, como pouco antes seu pai pedira a ela que fizesse.

Há diferenças marcantes também entre os outros intérpretes. Ana Lucia Benedetti e Andreia Souza, principais presenças vocais nas duas récitas, constroem impactantes Amneris. Benedetti, no entanto, cria um retrato mais aristocrático da princesa egípcia, trabalhando com habilidade os coloridos da voz e estabelecendo uma transformação da personagem ao longo da ópera. Enquanto isso, Souza cria uma Amneris feroz e sinuosa desde o início, culminando com uma leitura repleta de urgência e intensidade da longa cena da personagem no quarto ato.

Entre os barítonos, a lógica se inverte: na récita de sábado, Douglas Hahn foi um Amonasro discreto, enquanto no domingo David Marcondes soube revelar a força e a crueza do canto anguloso do papel. Savio Sperando foi impecável como Ramfis; Orlando Marcos, um rei de autoridade. David Pommeroy foi um Radamés pouco expressivo, com um vibrato excessivo e agudos estrangulados. Em alguns momentos, deixou inclusive de cantar algumas linhas – e a regência de Roberto Mninczuk, neste e em outros momentos, teve como grande mérito a capacidade de se adaptar, seguindo de perto os cantores e mantendo o fluxo musical do espetáculo.

Aida, 150 anos depois

Como em boa parte de sua obra, Verdi coloca em cena em Aida o confronto entre o desejo individual e o mundo social e político – e o drama que nasce das contradições entre eles. É delas que o compositor extrai a possibilidade de mergulho na vida interior de seus personagens, marca de sua visão de teatro e ponto de partida para uma nova forma de relação entre texto e música que dê a ela forma e sentido. 

A consequência disso é que, mesmo em óperas de caráter histórico, como Don Carlo, Verdi estabelece uma caracterização de personagens que extravasa a oposição entre heróis e vilões. É natural imaginar que ele não tivesse simpatia alguma pelas mortes provocadas pelo desejo expansionista de Felipe II, ou pelo sangue dos tribunais da Inquisição, mas isso não o impediu de tentar entender o personagem em suas paixões – sejam elas o desejo de amor ou então a frustração que nasce da necessidade de se curvar à Igreja. Do ponto de vista dramático, o monarca espanhol é muito mais complexo do que o revolucionário Marquês de Posa, que em sua luta pela liberdade é o único personagem que ao longo da ópera pouco se transforma. Até mesmo o Inquisidor, em sua cegueira, é mais do que uma ideia: é humanizado pela arrogância e pela vaidade. E humanizar, para Verdi, não é desculpar, mas, sim, jogar ainda mais luz sobre a origem da violência, da injustiça e da dor causada por essas figuras.

Cena de 'Aida' [Divulgação/Stig de Lavor]
Cena de 'Aida' [Divulgação/Stig de Lavor]

Em Aida, a separação entre o coletivo e o individual é quase didática. Os dois primeiros atos têm como cenário o espaço social, em que o rei e os sacerdotes egípcios preparam-se para a guerra, quase como em um oratório. Nos outros dois, entra em cena então a violência dos sentimentos, as contradições que nascem das interações entre os personagens. A diferença é que, na oposição entre egípcios e etíopes, Verdi parece escolher um lado. 

Egípcios são heróis, etíopes, os vilões. Egípcios representam a virtude da crença – a mesma que vai fazer com que Radamés peça a liberdade de seus prisioneiros. Etíopes agem nas sombras, motivados pelo desejo de vingança e lançando mão da traição. Radamés não se defende perante o tribunal sagrado dos egípcios, pois em silêncio reconhece sua culpa e a necessidade de punição – negá-la em troca de se entregar a Amneris seria corromper o mesmo valor que um dia o fez se considerar digno de liderar um exército. Aida, por sua vez, junta-se a ele em sua câmara de morte para se redimir da traição que cometeu. Defender a pátria, no caso da princesa, não traz nenhum sentido de grandeza, apenas a marca do erro a ser expiado. Um erro que Radamés jamais precisa reconhecer.

Não é de hoje, autores como Joseph Kerman e Julian Budden, entre muitos outros, reconhecem que a história de Aida é no mínimo problemática. Os dois colocam como questão central o fato de que seus personagens, de ambos os lados, acabam misturando seus destinos à aceitação do que Kerman chama de “um estado autoritário simbolizado pelos sacerdotes guerreiros de Ptá”. 

Massimo Mila também vai reconhecer o impacto que esse contexto tem no desenho dramático dos personagens. Em que pese a refinada teatralidade do ritmo da ação (que, infelizmente, se perde no Municipal por conta da decisão de se fazer três intervalos ao longo da ópera), Verdi não consegue colocar em prática sua “refinada psicologia” na compreensão da alma humana.

À luz dessas ideias não parece absurdo imaginar, como o faz a diretora Bia Lessa, que Aida aborda acima de tudo relações de poder. Em entrevista, ela explicou que a ópera trata “do aprisionamento da Etiópia pelo Egito.” “É uma ópera colonizadora. Então, a questão que me fiz foi como, respeitando tudo o que está escrito, todas as rubricas, mostrar quem essa é uma ópera sobre o poder. Sobre o fato de que, quando o poder significa mandar, a consequência inevitável é a guerra”, explicou. 

O objetivo é explorado de diferentes maneiras. Na grande cena do segundo ato, a referência é direta. Enquanto coro e orquestra exaltam os heróis egípcios, soldados matam, estupram, vivenciam o prazer da morte. No auge da celebração, caem do alto papeis picados sobre a plateia. O efeito funciona. Enquanto no palco celebra-se a vitória dos egípcios, a força da música contagia a plateia, que aplaude entusiasmadamente enquanto sobre ela caem papeis com a palavra “sofrimento”. A proposta parece ser uma reflexão a respeito do que fala a música que estamos aplaudindo com tamanha empolgação e gozo. Um gozo, talvez, cúmplice daquele mostrado no palco. 

Em geral, no entanto, a montagem é menos direta. Os cenários são feitos de cubos de papelão que assumem tanto a forma de um rio como a de um palácio ou de um templo, mas nunca oferecendo um quadro completo. São apenas pedaços que se revelam. E, se entendemos os cubos como as pedras das pirâmides egípcias, o que se propõe é desconstrução desses símbolos de uma grande civilização em favor de uma compreensão, fornecida pela ópera, de sua hipocrisia e ode à morte e ao sofrimento. 

Voltando a Massimo Mila. Já nos anos 1970 ele escreve que é preciso fugir da artificialidade da reconstrução do Egito Antigo na hora de se produzir Aida. Naquele momento, ele reclama que o teatro ainda não havia encontrado uma forma contemporânea de colocar a ópera sobre o palco. Cinquenta anos depois, esse não é mais um problema. E montagens como a de Bia Lessa nos ajudam a tornar mais rica e complexa a compreensão da obra verdiana. 

Amneris tem a última palavra na ópera: "paz". E a diretora, após o fim da música, projeta a palavra em letras garrafais no palco.

Mas de que paz estamos falando?

Mesmo quando Amneris se volta contra os sacerdotes pela punição de Radamés, seu pedido por paz não é necessariamente a sugestão de uma nova visão de mundo, mas, sim, a tentativa de encontrar dentro de si a paz necessária para seguir lidando com sua própria contribuição para esse status quo. 

Da montagem de Bia Lessa nasce um paralelo claro com o nosso tempo e seu fanatismo, a defesa intransigente daquilo que prega destruição, ódio, morte - muitas vezes de forma literal. Pedir paz é um caminho natural nesse contexto. E, para o público, uma mensagem fácil de aplaudir, quase como uma catarse. Fico em dúvida, porém, se, nos tempos que vivemos, ela é tão desconcertante quanto poderia ser o silêncio a nos obrigar à reflexão a respeito do quão cúmplices somos desse estado de coisas.

Cena final de "Aida" [Divulgação/Stig de Lavor]
Cena final de "Aida" [Divulgação/Stig de Lavor]

 

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