Em montagem em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, Grace Passô assume direção ativa, em nada reverente ou intimidada pela estatura da obra, estabelecendo pontes e diálogos que não castigam nem a ópera e seus admiradores, nem o tempo e seus contextos
Porgy and Bess, de George Gershwin e DuBose Heyward, recebeu da diretora cênica Grace Passô, em montagem no Theatro Municipal de São Paulo, um dos melhores tratamentos possíveis. A dramaturga, que detém um Prêmio Shell no currículo, optou por uma encenação de cores brasileiras em que motoboys e dançarinos da cultura negra contracenam – na mais negra das óperas célebres do século XX – diante de uma representação de um prédio da periferia em forma de tijolo. A estrutura concebida por Marcelino Melo, o Quebradinha, domina o palco e gera enorme curiosidade a cada vez que uma face se vira diante da plateia.
A concepção foi tão instigante quanto o primeiro elenco, em que a americana Latonia Moore, soprano com uma Aída no Metropolitan de Nova York, despontava como principal estrela, embora nada solitária. Na primeira encenação desta folk opera totalmente produzida pela casa da Praça Ramos, numa obra de incondicional demanda por artistas negros, Moore teve ao seu lado o excelente baixo Luiz-Ottavio Faria (Porgy), o barítono sul-africano Bongani J. Kubheka (Crown), que já havia assombrado o Municipal em 2024 com um bravo Escamillo (na Carmen dirigida por Jorge Takla) e uma cintilante Juliana Taino, mezzo que roubou a cena todas as vezes em que surgiu como Serena. Tudo isso contribuiu para um espetáculo de quase quatro horas que flui em todas as suas possibilidades.
O mérito, nesse caso, é de Grace Passô. Novata na ópera, a diretora ofereceu uma produção que valoriza a tocante história de uma vila negra pobre, oprimida pela polícia branca, enquanto lida com outros problemas endêmicos, como o vício em drogas, o desemprego, a violência e a pobreza extrema. Sem abrir mão de uma direção ativa, em nada reverente ou intimidada pela estatura da obra, Passô entregou um espetáculo que inala Estados Unidos e exala Brasil, estabelecendo pontes e diálogos que não castigam nem a obra e seus admiradores, nem o tempo e seus contextos.
![Cena da produção de 'Porgy and Bess' [Divulgação/Rafael Salvador]](/sites/default/files/inline-images/w-030_Rafael%20Salvador%20CR5_0791.jpg)
E que obra. Ainda que, na estreia, a Orquestra Sinfônica Municipal regida por Roberto Minczuk tenha soado um pouco dura em alguns dos ritmos mais agitados que Gershwin propõe, o que o público recebeu foi um espetáculo de grande poder encantatório e extremamente bem cantado, com tantos momentos eletrizantes, que tornou frequentemente inexplicável a opção por microfonar as vozes. Latonia Moore, Bonghani Kubheka e Luiz-Ottavio Faria exibiram vozes enormes, excelente afinação e uma incrível paixão pela partitura, o que faz pensar que nadariam às braçadas sobre a cama bem forrada pelo Coro Lírico Municipal e o Coral Paulistano, preparados por Maíra Ferreira.
No dueto Bess, You Is My Woman Now, a rendição elegante e a química entre as vozes implorou para que os rostos de Moore e Faria devessem ser pendurados numa galeria de talentos que já passaram pela casa: Moore mostrou uma técnica vocal tão sólida na emissão quanto flexível nas nuances, premiando a inconstante Bess com uma vitalidade rara para essa esquina entre a relação tóxica com Crown, a redenção ao lado de Porgy, temperada pela dependência química. Por sua vez, Luiz-Ottavio Faria, que trabalha boa carreira internacional, apresentou um Porgy de indiscutível maturidade vocal, com graves quentes e um nobilíssimo coração. O violento Crown também cumpriu todas as expectativas de ferocidade de quem já tinha visto Kubheka em 2024, num Escamillo de feroz virilidade.
É difícil ignorar que esta produção projeta a mezzo Juliana Taino para um outro patamar de sua carreira. Além de defender My Man's Gone Now com sentimento e técnica apurada, a paulistana foi a responsável por um dos momentos mais impactantes da ópera: a oração durante a tempestade, em que a atmosfera da ópera se transforma num culto evangélico imerso em suspense
Mas é difícil ignorar que esta produção projeta a mezzo Juliana Taino para um outro patamar de sua carreira, ainda essencialmente doméstica. Além de defender My Man's Gone Now com sentimento e técnica apurada, a paulistana foi a responsável por um dos momentos mais impactantes da ópera: a oração durante a tempestade, em que a atmosfera da ópera se transforma num culto evangélico imerso em suspense. Numa ópera repleta de standards eternizados por gente como Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e, por que não recordar?, Marisa Monte e o saudoso Carlos Frederico, Taino deixou uma marca infatigável na memória de quem presenciou a récita do dia 19. O dândi traficante Sportin' Life do tenor Jean William e o Jake do barítono Michel de Souza também foram de grande qualidade, bem como a teatralidade de Edineia Oliveira (Maria).
Os números de dança e movimento, coordenados por Mario Lopes, trouxeram break dance e funk com precisão cênica, enriquecendo o painel visual obsessivamente vermelho com aquilo que cenário algum ofereceria, mesmo com os recursos de vídeo de que Passô lança mão. O produto em cena é uma peça sem costuras visíveis nem palestranças dispensáveis, pulsante em sua reencarnação da obra de Gershwin e talvez o ponto estético mais alto da gestão da OS Sustenidos em sua administração no Theatro Municipal de São Paulo, hoje alvo de discussões burocráticas e políticas, num contrato prestes a ser efetivamente rescindido. Depois de um double bill com Friedenstag (Richard Strauss) e Le Villi (Puccini) de altíssima qualidade sob encenação do experiente André Heller-Lopes, Grace Passô não perdeu a oportunidade de entregar ópera esteticamente relevante, brasileiramente negra e atenta às sensibilidades das plateias de nossos tempos, sem jamais considerá-la uma peça definitivamente defeituosa por sua escrita de 1935. Quando quem pilota essa máquina dos tempos entende com o que está lidando, pouco importa se sua trajetória na ópera é curta ou extensa, e o resultado, nesta poderosa Porgy, é de aplaudir de pé.
![Latonia Moore e Luiz Ottavio Faria em cena de 'Porgy and Bess' [Divulgação/Rafael Salvador]](/sites/default/files/inline-images/w-038_Rafael%20Salvador%20CR5_0864.jpg)
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