Quando maestro e orquestra atingem um nível extraordinário

por João Marcos Coelho 10/11/2025

Osesp e Pierre Bleuse jogaram luz sobre Scriabin e renovaram nossa paixão pela Sagração da primavera, obra-prima de Stravinsky

A Osesp e o regente francês Pierre Bleuse construíram um dos concertos mais inteligentes da temporada 2026 da orquestra, ao justapor dois compositores russos contemporâneos entre si: um no início da vida, Stravinsky, outro no final, Scriabin. Sala São Paulo praticamente cheia na tarde de sábado, dia 8 de novembro, para reviver um dos momentos-chaves do século XX, rico, diverso e com certeza farol que indicou a babel da música – ou músicas que passaram a conviver até nossos dias. Naquela década, a ebulição musical fazia dos compositores verdadeiros artífices de mundos novos.

Compreende-se a necessidade logística de abrir com a Sinfonia nº 5 – Prometeu , o poema do fogo, de 1910, para piano e orquestra e que também prevê luzes que propõem uma sinestesia entre sons e cores, e em seguida a Sinfonia nº 4, composta entre 1905 e 1908. Talvez por isso, a segunda obra de Scriabin empalideceu. Isso não aconteceria se a ordem fosse invertida. Naquela imensa massa sonora, vale ainda ressaltar o excelente pianista Jean-Frédéric Neuberger.

Em todo caso, foi uma chance rara de compartilhar a escuta ao vivo dessas duas obras -- sobretudo a quarta – que raramente frequentam o cardápio de concertos por aqui. 

Outra característica que as une é a motivação extramusical. Ou seja, são músicas programáticas. Para Scriabin, modos místicos de se atingir o nirvana. Ele chamava tanto uma sonata para piano quanto obras como estas sinfonias de “poemas”, ao aplicar à sua música os princípios da teosofia, pela qual se apaixonara nos anos 1890, quando viveu na Europa. Sua transição para uma concepção mística da música e do mundo, influenciada pela teosofia que conhecera na Suíça. 

Apesar da grandiloquência e de grandiosos aparatos extramusicais como os efeitos de luzes, o fato é que ouvir na sequência a Sagração da Primavera, de Stravinsky, provoca um choque em nossos ouvidos, tamanha sua modernidade e poder de ainda hoje nos impactar, 112 anos depois de sua conturbada estreia em Paris. Ainda mais com a regência precisa de Pierre  Bleuse.

Após a estreia escandalosa, em maio de 2013, como música para a coreografia de Nijinsky com os Ballets Russes de Diaghilev, Stravinsky considerava-se a própria virgem escolhida para dançar até a morte como sacrifício, a fim de agradar aos deuses da primavera e garantir boa colheita. Chegou a dizer a um repórter francês que “minha música é arquitetônica, não anedótica”. O furor da estreia dirigiu-se à coreografia, e não à música. Ela só foi ouvida como peça de concerto no ano seguinte, 1914, “em toda a sua glória arrebatadora, livre dos visuais irritantes de Nijinsky”, na expressão de Richard Taruskin. Quem regeu foi Pierre Monteux, que tinha comandado a estreia. Foi, nas palavras de Stravinsky, “um triunfo que compositores raramente desfrutam”. Muitos anos mais tarde, quando já morava nos Estados Unidos pós-Segunda Guerra, Stravinsky completou: “prefiro Le Sacre como peça de concerto”.

E como ela é extraordinária. Principalmente quando maestro e orquestra atingem um nível extraordinário. Não é exagero. Bleuse transmitiu aos músicos da Osesp a riqueza e complexidade rítmica, como, por exemplo, as mudanças de compassos vertiginosas em vários momentos. E seu domínio espraiou-se pelos músicos, transformando formidáveis dificuldades, sobretudo para os metais, em música que fluía fácil, porém torrencial como são os blocos sonoros que nos colocam “dentro” desta música fascinante.

Um concerto pra não esquecer. Porque revela a maestria de um compositor raramente tocado por aqui, como Scriabin. E porque renova nossa paixão pela obra-prima de Stravinsky.

P.S.: Reli semana passada um artigo de Taruskin sobre os 100 anos da Sagração, fartamente comemorados em 2015. Ele fala dos usos e abusos ideológicos que  se fizeram da Nona de Beethoven, no século XX, lembrando de execuções de Furtwängler e a Filarmônica de Berlim curvando-se diante de Hitler. Não resisto em compartilhar com vocês outro fato incrível que ele, notório especialista em música russa, revela. A mensagem da Sagração é normalmente deixada de lado em concertos. Mas um dos mais canhestros e desajeitados abusos ideológicos aconteceu na estreia da primeira produção soviética, do Bolshoi, em moscou, em 1965, pouco tempo depois da primeira visita de Stravinsky à Rússia em 1962, comemorando seus 80 anos. “O cenário implicitamente religioso permaneceu um problema” escreve. “Os coreógrafos resolveram o problema fazendo com que um jovem herói soviético saltasse do corpo de baile durante a pequena escala de flauta, pouco antes do final, varresse a vítima sacrificada para longe do perigo e (coincidindo com o último acorde estrondoso) cravasse uma adaga no ídolo diante do qual ela dançava." 

Jean-Frédéric Neuberger e Pierre Bleuse durante concerto com a Osesp [Divulgação]
Jean-Frédéric Neuberger e Pierre Bleuse durante concerto com a Osesp [Divulgação]

 

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