Com elenco bem escolhido, com excelente regência e bela montagem, apesar do orçamento curto, o Theatro São Pedro demonstrou que sabe o que é uma ópera e como fazer ópera
Mais de 200 anos depois de sua criação, as convicções de fraternidade humana, a luta contra a barbárie das injustiças que estão contidas na ópera Fidelio continuam sempre presentes e necessárias, infelizmente.
Beethoven não escreveu uma obra alegórica, como o coro final da Nona sinfonia. Encenou, num drama, uma situação concreta. Uma esposa salva o marido das garras de um tirano contra o qual ele se opusera. Isso se passa numa prisão, e o prisioneiro injustiçado compartilha sua sorte com outros prisioneiros. Ou seja, não se trata de um caso individual, mas de um destino coletivo.
Mais ainda, as cenas introdutórias ao drama introduzem uma situação paralela, corriqueira e familiar. Essa concomitância da trivialidade cotidiana com a enormidade da injustiça, o contraste entre o pequeno e o grande sentimento, entre as questões do dia a dia e a dor, a tortura, a morte que estão ali, vizinhos, sublinham a anestesia que é criada diante do mal. Do outro lado da parede, o horror.
Beethoven não nos permite esquecer que o mal mais perigoso é aquele que se normaliza. A genialidade de Fidelio está em mostrar que a tirania não precisa de monstros caricatos: basta a conivência de quem acha que cumpre apenas seu dever.
A esposa em questão, Leonore, tem que se infiltrar nesse quotidiano para chegar ao seu objetivo. Para isso, disfarça-se de homem, toma o nome de Fidelio, salva Florestan, seu marido.
William Pereira encenou a recente montagem de Fidelio no Theatro São Pedro, de São Paulo. Ele disse muito bem, numa entrevista, que Fidelio demonstra a luta pessoal e constante exigida para atingir os grandes valores ensinados pelo Iluminismo – justiça, fraternidade, igualdade, racionalidade, liberdade –, luta essa que não se termina.
Desse modo, o final do deus ex-machina Don Fernando, o ministro esclarecido que libera os prisioneiros, é posto em questão pela própria trama: se Leonora não se tivesse investido, seu marido não teria sido salvo. Uma situação favorável trazida por um poderoso nunca é garantida.
Leonore, entre disfarces e silêncios, rompe a passividade com seu grito "Töt’ erst sein Weib!" (Mate sua esposa primeiro ) – numa demonstração de que a liberdade exige ruptura, coragem e ação, não apenas espera. A obra nos revela: o horror não está só no monstro que pode ser derrotado, mas na normalização da injustiça.
O grande pintor espanhol Francisco Goya, iluminista ele também e contemporâneo de Beethoven, escreveu em uma de suas gravuras: “O sono da razão produz monstros”. Portanto, é necessário um constante estado de vigília para não deixar que a razão, e todos os seus valores, possa dormir e se eclipsar. A liberdade nunca é conquistada definitivamente.
Tornou-se uma prática frequente transpor 'Fidelio' para os dias de hoje. 'Fidelio' é atemporal e justifica essa transposição. A concepção de William Pereira foi muito eficaz, respeitando a coerência dramática original da composição
Nossa história brasileira ecoa Fidelio como um espelho sombrio: quantos Florestans foram torturados nos porões da ditadura? No mundo, quantos ainda hoje padecem em celas insalubres, vítimas de sistemas que naturalizam a barbárie?
Em Fidelio, e durante a ditadura, os prisioneiros são opositores políticos. No entanto, a tortura e o aviltamento nas cadeias permanecem com os detidos de direito comum. Assim como na ditadura brasileira, quando tantos Florestans foram silenciados, hoje testemunhamos a banalização da violência estatal em prisões superlotadas ou na perseguição a minorias. A cela de Florestan ecoa em nos noticiários.
Tornou-se uma prática frequente transpor Fidelio para os dias de hoje. Fidelio é atemporal e justifica essa transposição. A concepção de William Pereira foi muito eficaz, respeitando a coerência dramática original da composição.
No início, uma sala de administração penitenciária high-tech, cheia de computadores, traduzia a frieza burocrática na qual se enxertou a trama sentimental entre Jaquino, Marzelline, Rocco e Fidelio. O sublime coro dos prisioneiros, vestidos com macacões cor de laranja, dispostos atrás de grades, surgiu como um alívio pequeno e efêmero para os condenados. Esses macacões, uniformes prisionais de hoje, sugeriam que a desumanização se espraia pelo mundo.
A cena da cripta, em que uma cadeira elétrica sublinhava o horror da pena de morte, e o final, com um fundo de céu azul, exaltaram o contraste: tanto os cenários de Giorgia Massetani quanto os figurinos de Antônio Rabàdan colaboraram fortemente para a expressiva afirmação do drama.
Eiko Senda encarnou Leonore-Fidelio de maneira impressionante. Seu disfarce masculino, ao contrário do que ocorre em tantas produções, era muito convincente. Sua voz se projetava com força e impacto, dominando a cena e o papel. Eric Herrero foi um Florestan comovente, Licio Bruno assustador em seu papel tirânico de Pizarro, Gustavo Lassen um Rocco humano, dividido entre sua covardia e sua humanidade. O casal Marzelline e Jaquino, ou seja, Lina Mendes e Mar Oliveira, possuem ambos grandes requintes de canto e de elegância musical. Andrey Mira assumiu, com autoridade, a pequena parte do ministro Don Fernando. Em suma, foi possível, com elenco nacional e orçamento estreito, montar um Fidelio de qualidade mais do que digna.
Cláudio Cruz regeu com grande sentido das nuanças e das sutilezas, equilibrando os timbres, extraindo sonoridades sedosas das cordas: o quarteto Mir ist so wunderbar soou divinamente, e essa qualidade permaneceu durante toda a ópera. Sem excessos, ele destacou a tensão entre os metais e as cordas. O equilíbrio dos naipes, a relação das vozes com a orquestra, as delicadas transições e o sentido narrativo da regência demonstraram que Fidelio é, antes de tudo, uma ópera de maestros, à qual Claudio Cruz soube dar vida e alma.
Fidelio é um singspiel, ou seja, uma ópera que tem partes faladas. Estas foram traduzidas para o português, com alguns cortes e adaptações que não desnaturaram o original: uma solução de facilidade. A música, porém, não foi alterada em nada, permitindo que a ópera surgisse com toda sua força e beleza.
Com elenco bem escolhido, com excelente regência e bela montagem, apesar do orçamento curto, o Theatro São Pedro demonstrou que sabe o que é uma ópera e como fazer ópera. É inútil ficar desfigurando obras originais em tentativas demagógicas para “atingir” o público de hoje. Basta o respeito, o rigor, a compreensão inteligente e a qualidade musical: com isso, a obra dá seu recado sozinha.
[O crítico Jorge Coli assistiu ao espetáculo do dia 27 de abril]
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![Eiko Senda e Eric Herrero em cena de 'Fidelio' [Divulgação/Iris Zanetti]](/sites/default/files/inline-images/w-Eiko-e-Eric_Iris-Zanetti.jpg)
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