Satie e Milhaud, duas visões sobre a morte

por João Luiz Sampaio 24/05/2021

Já estamos avançados no ano II da pandemia e ainda uma questão insiste em se manter relevante no mundo da ópera e da música clássica: a ameaça da internet sobre a música feita ao vivo. Parece sério, mas é a não-questão. Não se trata, afinal, de substituir a experiência da sala de concertos pela da sala de casa. Mas de reconhecer que elas são diferentes, têm regras, critérios de qualidade e sentidos próprios – e que a pandemia deixou ainda mais claro que há formas de convivência possível entre elas quando contemplamos o futuro do nosso meio.

Esse futuro possivelmente híbrido, em que a internet se torne presença obrigatória no cotidiano das instituições musicais, só ganhará de fato cara e forma quando a pandemia ficar no passado – e orquestras e teatros de óperas puderem voltar a atuar de acordo com suas máximas forças. Até lá, porém, espetáculos presenciais transmitidos on-line se prestam àqueles que ainda não se sentem seguros, não importa por quais motivos, a ir pessoalmente aos teatros.

Para a crítica, e não apenas para os artistas, essa realidade pandêmica coloca alguns desafios. No último final de semana, o Theatro São Pedro encenou uma dobradinha formada pelas óperas Sócrates, de Erik Satie, e O marinheiro pobre, de Darius Milhaud. Como avaliar, de casa, um espetáculo? Nessa relação entre interpretação e crítico, afinal, colocam-se intermediários: a captação do som, as escolhas do diretor de imagem, a qualidade da transmissão etc. Em que medida, então, o crítico não se torna refém de um olhar que não o seu?

Não tenho certeza, mas talvez seja bom que o leitor saiba que acompanhei a montagem por meio da transmissão e não no teatro.

Sócrates e O marinheiro pobre pertencem a um mesmo espaço físico, a França, e a um mesmo tempo – a primeira é de 1918, a segunda, de 1925 –, preocupado em repensar (ou questionar) o tradicional à luz de novas possibilidades. 

Em Sócrates, as três cenas envolvendo a figura do filósofo – a primeira, um monólogo de Alcibíades a respeito de sua figura, a segunda, um diálogo entre ele e Fedro, e a terceira, a descrição de sua morte por Fédon – não constituem uma narrativa no formato tradicional. São recortes que, no final das contas, aproximam-se menos pela consequência dos fatos do que pela temática: a morte.

E a mesma subversão da narrativa aparece no canto: não há um sentido particularmente dramático nas linhas vocais, os cantores não nos levam, em seus monólogos, a um clímax. Porque, no final das contas, como já anotou o crítico Mark Swed, quando se fala de morte sem o “benefício da emoção mais forte”, afirma-se acima de tudo aquilo que é mais profundo na peça de Satie: a compreensão de que não há vida sem morte, que deixa então de ser tratada como um evento único, como nos ensinou o repertório do século XIX.

 

O marinheiro pobre, por sua vez, sugere um sentido mais tradicional de narrativa. A ópera nos conta, afinal, uma história, a da Mulher que vive em função da esperança de que seu marido um dia retorne e, sem saber, acaba por matá-lo. Mas há uma escolha interessante no libreto de Jean Cocteau: em cena, não vemos a Mulher se dar conta de que matou o marido. A ópera termina antes que ela entenda a própria tragédia. E se não a vemos sentir o desespero provocado por seu ato, essa morte também se esvazia: impede o espectador de compartilhar com a Mulher uma catarse marcada pela intensidade do sentimento ou sugere outras possibilidades de leitura para o ato de matar aquilo que se deseja.

Histórias diferentes, músicas diferentes. E é muito hábil o modo como a Orquestra do Theatro São Pedro, sob regência de Gabriel Rhein-Schirato, recria as atmosferas musicais de cada espetáculo, da sobriedade e do caráter estático da partitura de Satie à escrita de Milhaud, na qual cada personagem ganha um tipo de identidade vocal, aproximando o canto da realidade do personagem que recria, mas criando um mosaico que parece, ao mesmo tempo, verista e irreal.

Isso coloca desafios também aos cantores. O Alcibíades e o Amigo de Vinicius Atique; o Fédon e a Mulher de Gabriella Pace; e o Fédon e o Marido de Paulo Mandarino são exemplos da exploração rica de coloridos na caracterização de personagens tão diferentes entre si, acompanhados pela presença mais do que especial em cena do veterano baixo Eduardo Janho-Abumrad como Fedro e o Pai; e do contratenor Victor Lucas Bento como Sócrates.

À direção cênica couberam, no entanto, os principais desafios. Como contou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, Caetano Vilela precisou trabalhar com uma movimentação cênica na qual cada cantor devia estar sempre a três metros de distância um do outro e a cinco metros da orquestra. Isso em um palco tomado por placas de acrílico, que protegiam os cantores dos aerossóis dos colegas – e que exigia um cenário único para duas óperas ambientadas em contextos diferentes.

A solução foi apostar na luz que, em Sócrates, deixa os cantores flutuando em meio a escuridão e, em O marinheiro pobre, realça o contorno das plataformas em que cada cantor atua. Mas não só: no gestual dos personagens e mesmo nos figurinos há um sentido de movimento que o protocolo sanitário tornava mais difícil (é como se as cores das vestimentas do Pai fossem, sozinhas, capazes de sugerir o ambiente de um bar em que se passa a história).

A cena do assassinato, por sua vez, torna-se rica com a utilização do teatro de sombras. Não se trata apenas de uma saída inventiva para uma situação que, por conta dos protocolos, impediria um cantor de se aproximar de outro para matá-lo. O efeito visual obtido dá ao final da ópera aspecto fantasmagórico e, por isso mesmo, irreal, terminando a narrativa em suspenso – como sugerem texto e música.

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Cena de 'O marinheiro pobre', em montagem do Theatro São Pedro [Divulgação/Heloisa Bortz]
Cena de 'O marinheiro pobre', em montagem do Theatro São Pedro [Divulgação/Heloisa Bortz]

 

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