“Estou caindo de exaustão. Estou mortalmente ferido.” À porta do cemitério, o poeta pede por descanso. O barítono Matthias Goerne inclina-se na direção do piano, descreve com o olhar a “fresca pousada” onde quer se hospedar. Mas Anton Mejias não lhe dá atenção. No piano, uma das mais gentis melodias de Schubert é agora negativa implacável. “Então siga adiante, sempre adiante”, conclui o poeta. O que resta na voz não é mais só dor. É silêncio. Solidão.
Schubert escreveu Winterreise, baseado em poemas de Wilhelm Müller, no final da vida. O quanto ele sabia da proximidade da morte é tema para debates, assim como o quanto do tom melancólico das canções estava relacionado a essa percepção. Dietrich Fischer-Dieskau, por exemplo, em seu livro sobre as canções do autor, Schubert's Songs, escreve que sua peça seguinte, o Trio para piano nº 2, com sua “joie de vivre”, é prova de certa separação entre vida e obra, ou ao menos da negativa de que o trabalho no ciclo teria exaurido completamente suas energias. A musicóloga Susan Youens, por sua vez, é clara ao afirmar, em Retracing a Winter's Journey, que “Schubert confrontava ali seu próprio provável destino”. “Sabia-se então o suficiente sobre os estágios finais da sífilis e que ela levaria à demência terrível e à paralisia, estados a antecipar o desfecho extremo.”
Seja como for, é certo que a composição – realizada em duas partes, em fevereiro e em outubro de 1827 – não foi trivial. A necessidade de isolamento o fez perder mais de uma apresentação com suas obras, como anotaram em suas correspondências amigos do autor. E ele próprio, ao convidar Marie von Pratobereva, anfitriã de muitas dessas Schubertíades, o fez com uma dose de mistério. Ela pergunta a ele por que seu humor parecia tão sombrio. “Vocês logo ouvirão e compreenderão”, ele responde. “Eu cantarei a vocês um ciclo de canções assustadoras. Ela exigiram de mim mais do que qualquer outra canção que eu tenha escrito.”
Após a primeira audição, não demorou para que comentaristas da época associassem a Viagem de Inverno à própria jornada de Schubert em direção à morte. Era irresistível demais. Mas a jornada proposta pelo autor dificilmente sugere um caminho linear da vida para a morte. Uma das marcas mais originais de Winterreise, afinal, é o fato de que o ciclo começa pelo final: na primeira canção, Gute Nacht, o poeta fala de uma desilusão amorosa e da necessidade de deixar a casa em que um dia amou a mulher, antes de voltar a ser um forasteiro. Não se espera o cair da noite. Ele já chegou: a sombra da lua é sua única companheira.
De que jornada ou viagem estaríamos, então, falando? Charles Rosen, em Music and Sentiment, chama atenção para aquilo que define como a principal contribuição de Schubert à medida em que se afasta do universo do classicismo nas primeiras décadas do século XIX. A ênfase em sentimentos opostos, escreve ele, é substituída por uma “maior unidade, com o efeito dramático concebido não por meio de contrastes e oposições, mas essencialmente pelo aumento da intensidade”. Schubert será, assim, o mestre da evocação de emoções, capaz de sustentar um só sentimento por “extraordinárias durações por meio de sutis inflexões”.
Em Winterreise, é justamente dessa reiteração – que não pode ser confundida com repetição – que se faz a trajetória do poeta. Com a narrativa encerrada desde o início, não é mais necessário contar uma história. Antes, é no espaço da mente, confrontada aqui e ali pela força dos elementos que a traz de volta ao mundo físico, que o ciclo se desenvolve. Obviamente, não se trata de um mergulho expressionista em um mundo interior dilacerado pela dor. Tampouco, porém, estamos diante do canto de um amor idealizado. O amor, aqui, afasta-se de seu objeto. É o feixe que leva à vida e à morte, que se tornam uma só coisa.
O poeta relembra a tília onde gravou palavras de amor. Passou por ela ao deixar a casa, e segue ouvindo o seu sussurro. “Aqui encontrarás o seu descanso!” Mejias reproduz ao piano o farfalhar dos galhos, e eles soam como uma chamada sinuosa à morte. O vento sopra no rosto, frio. Enquanto o gelo se quebra em pedaços, Goerne canta a ardência sedenta do poeta. Mas o faz dando forma a uma atmosfera abafada. O ar parece parado. O calor é insuportável.
Se a trajetória do poeta, como narrada por Schubert, não está nos contrastes que levariam passo a passo a um desfecho, a ideia de um arco de interpretação que perpasse o ciclo e o entenda como um todo coeso torna-se um desafio para o intérprete. Na leitura de Matthias Goerne, em seu recital no Teatro Cultura Artística no dia 26 de setembro, a solução é inspirada e vem na forma de um timbre acre, quase áspero, em especial nas regiões mais graves, mas também quando texto e música pedem a passagem para o alto, que ele usa quase como um simulacro de luminosidade, como a representação e algo que não está ali.
É uma escolha interessante na medida em que reforça o caráter marginal do poeta. Esse “estar fora” apresenta-se de diferentes formas. A ênfase que ele coloca em “O que ainda estou fazendo entre os que dormem”, em Im Dorfe; ou o quase grito de terror em que ele transforma “Que desejo insensato é este que me impele às regiões desertas” em Der Wegweiser – são momentos em que o poeta sugere não se enxergar como parte do mundo pelo qual é obrigado a caminhar. Mas o estranhamento se dá também com relação ao próprio coração, o próprio corpo. “Será que percebi que estive chorando?” (Gefror’ne Tränen); “Meu coração, neste riacho, reconhece agora tua imagem? Será que sob tua casca também é assim turbulento?” (Auf dem Flusse). Há em tudo isso também alguma ironia, que Goerne sabe construir sem a transformar em displicência. Afinal, só o pertencimento, ou a noção de que ele um dia existiu, é capaz de revelar a sensação de estranhamento que perpassa todo o ciclo. É preciso alguém que sente o mundo de maneira intensa para se afastar, ou se perceber afastado, dele com a mesma intensidade.
O piano de Mejias descreve com delicadeza desconcertante um sonho de primavera. A voz de Goerne acredita. Mas a música começa a se desfazer. Acordado, o poeta agora olha pela janela. E tenta pintar com a voz uma imagem da primavera sobre a paisagem de inverno (o modo como Goerne o faz, não há palavras para descrever). Quando o sonho retorna, já é só um resto de memória. “Quando irão verdejar as folhas na janela? Quando terei a amada em meus braços?” Na voz de Goerne, o poeta parece saber bem a resposta.
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