Violência e silêncio em ‘Navalha na carne’ e ‘Homens de papel’

por João Luiz Sampaio 11/04/2022

Plínio Marcos definia-se como um repórter. “Eu escrevo histórias. Eu tenho histórias para contar”, diz o dramaturgo santista em um longo depoimento sobre sua vida publicado em site dedicado à sua obra. “Eu sempre escrevi em forma de reportagem. As minhas peças não têm ficção, sabe? Eu escrevo reportagens.”

Sua primeira obra para o palco foi mesmo baseada em um acontecimento real. Plínio Marcos leu em um jornal a notícia de um menino que, na prisão, foi estuprado por colegas de cela, que acabou em seguida assassinando. Dali nasceu Barrela, de 1959.

“Escrevi em forma de espetáculo de teatro, que era o que eu mais conhecia, mas não me preocupei com os erros de português, nem com as palavras. Imaginei o que se passara no xadrez (...), coisas que eu conhecia bem de tanto escutar histórias na boca da malandragem. E dei o nome de Barrela, que é a borra que sobra do sabão de cinzas e que, na época, era a gíria que se usava para curra.”

Escritas oito anos depois, Navalha na carne e Homens de papel podem não ter sido inspiradas em notícias de jornal. Mas os personagens que retratavam ainda eram a “gente abandonada à própria sorte e a uma solidão sem fim à margem, invisíveis, sem voz nem vez”, nas palavras do ator e dramaturgo Oswaldo Mendes, biógrafo de Plínio.

Em Navalha na carne, o cafetão Vado acusa a prostituta Neusa Sueli de lhe ter roubado dinheiro, mas ela suspeita de Veludo, homossexual que se junta aos dois no claustrofóbico quarto de bordel. Já Homens de papel leva a narrativa para a rua, mais especificamente o beco onde um grupo de catadores de papelão é explorado por Berrão. 

A primeira foi transformada em ópera por Leonardo Martinelli; a segunda, por Elodie Bouny. E as duas subiram ao palco pela primeira vez no último final de semana no Theatro Municipal de São Paulo, com direção musical de Roberto Minczuk e direção cênica de Fernanda Maia e Zé Henrique de Paula, respectivamente.

Os personagens de Plínio Marcos são, nas palavras de Sergio Manoel Rodrigues, resultado de uma força que oprime o indivíduo. Mas entre esses seres oprimidos também se estabelecem formas de opressão.

Em Homens de papel, Berrão explora os catadores de papelão – que, por sua vez, são capazes tanto de trair uns aos outros quanto de ameaçar com violência a mãe que se recusa a parar de trabalhar, pois precisa do dinheiro para salvar a vida da filha doente. Em Navalha na carne, Vado explora Neusa Sueli e Veludo, condiciona a existência de ambos a seu próprio lucro. Plínio, diz Oswaldo Mendes, é implacável ao revelar as relações entre esses personagens sem perspectiva. “Não há solidariedade na miséria. É cada um por si e Deus por nenhum.”

A crueza das histórias e dos diálogos é retrato de um mundo, mas também revela a experiência humana do teatro de Plínio Marcos, a dimensão que suas personagens têm. Dessa mimetização da violência e da opressão pelo oprimido, nascem, diz o crítico Edelcio Mostaço, “desvendamentos cada vez mais cruéis, pérfidos ou insidiosos, cujos objetivos são levar o outro ao martírio, isolá-lo num cúmulo de solidão e desamparo que, não raro, atinge as raias da condição abjeta”.

A música reivindica para si espaço próprio. Pois ela não apenas potencializa o que é falado, mas revela dimensões também no silêncio das palavras

Tudo isso se dá na urgência do momento, da inconsequência, do desespero, da pulsão de morte, únicas respostas a um tempo presente para o qual não há passado ou futuro. Em Navalha, a discussão sobre a ação do tempo no corpo de Neusa Sueli diz mais respeito ao ódio do que a uma reflexão sobre o passar do tempo. Em Homens de papel, a criança, símbolo do porvir, do desejo de vida da infância, vive à beira da morte.

E, quando as peças se transformam em ópera, há ainda mais elementos a se considerar.  Aqui, afinal, a música reivindica para si espaço próprio. Pois ela não apenas potencializa o que é falado, mas revela dimensões também no silêncio das palavras. 

Na direção de Fernanda Maia, tão atenta às minúcias da relação entre as personagens de Navalha na carne, a figura triste de Veludo, que precisa roubar o dinheiro do “patrão” para pagar o afeto do jovem namorado, agiganta-se no modo como envolve e seduz Vado (pelo desejo) e diminui Neusa Sueli (pela palavra). Ela, por sua vez, faz do sexo que a une a Vado a própria arma a confrontá-lo – um confronto em que a força do cafetão eventualmente não é mais do que medo. Tudo isso está dito. Mas as leituras oferecidas pelos intérpretes são feitas tanto de silêncio quanto de violência.

O gestual de Homero Velho, mesmo fora de cena, em seu quarto no bordel, é tão marcante quanto sua presença ao lado de Neusa Sueli e Vado, insinuante e sinuoso em sua decadência no qual o desejo é tudo e nada. A prostituta de Luisa Francesconi prende a atenção na linguagem corporal com que observa a cena de Vado com Veludo – ou quando assume o protagonismo, rasgando o silêncio e fazendo do próprio corpo humilhado uma ameaça. A intensidade e a força com que Fernando Portari inicia o espetáculo é um risco: para onde mais ir à medida em que a cena se desenvolve? Mas seu Vado não para de encontrar novas camadas de violência, ódio, na fala e no canto. 

Na partitura de Martinelli, os personagens alternam entre a fala, o recitativo e o canto; e a escolha está sempre de acordo com a exigência do drama e da palavra

Tamanhas possibilidades dramáticas têm a ver com a música de Leonardo Martinelli. Desde os primeiros acordes, está colocado o clima de violência em que a história se dá. Mas o compositor, na instrumentação e na orquestração, encontra nesse ambiente sufocante diferentes matizes, estabelecendo com sua música cores novas para cada momento da interação entre as personagens. A mesma diversidade está na escrita vocal, que se alterna entre a fala, o recitativo e o canto, escolhendo entre eles de acordo com a exigência do drama e da palavra, e recorrendo à forma da ária ou do concertato sempre de maneira integrada ao todo – um todo em que a violência nasce, afinal, da desgraça individual de cada personagem. Uma estrutura que Roberto Minczuk soube conduzir com raro sentido dramático à frente de uma Orquestra Sinfônica Municipal capaz de nos relembrar do porquê é um dos maiores conjuntos sinfônicos brasileiros.

Cena de 'Navalha na Carne' [Divulgação/Stig Stigliani]
​​Cena de 'Navalha na Carne' [Divulgação/Stig Stigliani]

Se Navalha na carne é construída a partir da diferença entre os personagens, em Homens de papel o diretor Zé Henrique de Paula parece optar por igualá-los. Com exceção de Berrão, vestem-se todos da mesma forma, como se estivesse sendo retratado um grupo no qual a individualidade importa menos que o todo. Há motivos para isso. Vivem na mesma situação, demonstram aparentemente todos o mesmo objetivo, forçar Berrão a tratá-los de uma forma melhor. Mas o recurso apaga o que há de diferença e marcante no drama (e aqui ambos os textos se aproximam em especial): o sexo como moeda de troca e a violência como único caminho para a satisfação do desejo. É ao mesmo tempo a instrumentalização do corpo e a falta de controle sobre ele, tão bem interpretados, respectivamente, pela soprano Elaine Morais como Maria-Vai ou então pelo tenor Fernando de Castro, cujo Coco é uma das criações mais marcantes de todo o espetáculo.

Ao brigar para enterrar a filha, Nhanha tenta dar sentido a uma morte banal, desnecessária, a morte de alguém cuja vida foi irrelevante, marcada pela dor física e por um final ainda mais repleto de violência e agonia

Cenários e figurinos parecem brigar também com a busca de Elodie Bouny de dar diversidade à caracterização das personagens, utilizando desde recursos da música atonal à evocação de uma identidade musical nacional retrabalhada, misturados em uma escrita contínua que, em círculos, vai encontrando e reencontrando situações e personagens. A compositora também abre e fecha a partitura com duas passagens corais, inseridas no texto por Hugo Possolo, responsável por transformar a peça em libreto de ópera. Na primeira, é apresentado o cenário (“Engolidos pela cidade, engolidos pela cidade”); na segunda, após a morte de Gá e de sua mãe exigir de Berrão dinheiro para o seu enterro, fecha-se o ciclo da narrativa, empurrada para frente, a nos lembrar que a situação daqueles personagens rasgados, dobrados como papel amassado, continuará a mesma. 

No final de Homens de Papel, Nhanha (a soprano Elaine Martorano, em grande desempenho) desespera-se com a morte da filha. É uma morte banal – e conseguir o dinheiro de Berrão é tanto um ato de coragem (que outros personagens não foram capazes de manifestar) quanto uma providência pequena perante o que a mãe pretende com ela realizar: dar sentido a uma morte banal, desnecessária, a morte de alguém cuja vida foi irrelevante, marcada pela dor física e por um final ainda mais repleto de violência e agonia. É com a dor dessa morte e o contraste que existe entre a importância dada a ela pela mãe e a falta de importância que tem no quadro geral das coisas que saímos da peça. Ou poderíamos sair. Porque o coro, ao tentar de alguma forma arrematar e dar sentido à narrativa, assim, extirpa dela sua violência, que reside justamente na contundência do que está sendo mostrado no palco.

O projeto da double bill Plínio Marcos surgiu há mais de uma década, quando Oswaldo Mendes provocou Leonardo Martinelli a pensar no dramaturgo como ponto de partida para uma ópera. De lá para cá, estabeleceu-se um caminho virtuoso: na coragem de Martinelli e de Elodie Bouny de encarar o desafio, na acolhida dada ao projeto pelo maestro Roberto Minczuk, na compreensão da importância das óperas pelo Instituto Odeon e seu diretor artístico Hugo Possolo, o primeiro a programá-las, e na sensibilidade da Sustenidos ao manter o projeto vivo, mesmo após a troca de gestão no teatro. 

Não são escolhas inocentes: levar ao palco da ópera obras de Plínio Marcos é não apenas abordar temas que seguem contemporâneos, mas também colocar claramente que a renovação do gênero passa pela aposta na criação e pelo incômodo que a escolha de temas pode provocar. Tudo isso para dizer o seguinte: não há como diminuir a importância que esse espetáculo tem e terá por um bom tempo.

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Cena de 'Homens de papel' [Divulgação/Stig Stigliani]
Cena de 'Homens de papel' [Divulgação/Stig Stigliani]

 

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