Wagner e Verdi em duas excelentes apresentações

por Jorge Coli 13/11/2021

A urgência pela originalidade a qualquer custo pode fazer com que grandes diretores se esqueçam da expressividade teatral fundida com a obra, para montar uma ideia. É uma pena. De qualquer forma, resta a música

Os grandes teatros internacionais de ópera, ao contrário do que ocorre no Brasil, conservam suas produções por anos. É assim que a Opéra de la Bastille, em Paris, retomou a montagem de Willy Decker, para Der Fliegende Holländer, de Richard Wagner que data... do ano 2000, e para um Rigoletto de Claus Guth, datado de 2016.

Decker e Guth são dois grandes diretores alemães. La Traviata do primeiro, concebida para o festival de Salzburgo em 2005, com Netrebko e Villazón, é uma obra-prima, felizmente registrada em DVD. O Navio fantasma, que o segundo montou para Bayreuth em 2003, se não primava pela leveza, se multiplicava as projeções de modo talvez excessivo, mantinha a expressividade da ópera.

O Navio fantasma, de Decker, retomado agora na Bastilha (espetáculo do dia 28 de outubro), não tem a continuidade sem falhas da Traviata de Salzburgo. O cenário austero era muito pouco sedutor, algumas soluções não funcionaram muito bem, como a cena das fiandeiras (claro que, com o academismo atual dos diretores de cena fica proibida a obediência ao libreto; assim, em vez de rocas e fusos, havia um grande pano branco, que as coristas fingiam costurar, sem grande interesse nem plástico, nem dramático). Senta não se atirou no mar, ao final, nem ressurgiu em transfiguração com o Holandês, mas enfiou uma faca na barriga, como Butterfly. Um insistente jogo de troca de retratos entre Senta e o Holandês, que se queria simbólico, era antes de uma obviedade constrangedora.

Mas, sobretudo a partir do terceto Wie aus der Ferne, a emoção cresceu.

O Rigoletto (espetáculo do dia 29 de outubro) de Guth era mais “conceitual”, como os encenadores de hoje gostam de dizer e de empregar. Ou seja, trata-se de enfiar o espetáculo numa ideia. No caso, o “conceito” era a memória de Rigoletto, com objetos contidos em uma caixa de papelão, entre eles o vestido manchado de sangue de Gilda. A cena se passava, por sua vez, numa imensa caixa de papelão, grande ampliação da precedente, em que os personagens davam a impressão de brinquedinhos. No início, aparece um ator que é o duplo de Rigoletto, e que ressurgirá ao longo da trama – podemos entender, então, que a ópera se configura como um flashback. Rigoletto e Sparafucile, no dueto, se vestem da mesma maneira: mais um duplo, Rigoletto e o assassino seriam um único ser. Duplo, triplo, quádruplo de Gilda, com bailarinas adolescentes, acentuando a perversão do duque e a perda da inocência. Madalena surge num palco como vedete de teatro revista, acompanhada por bailarinas de maiô e cheias de plumas durante o La donna è mobile e, pior ainda, durante o quarteto, o que excluiu todo sentido trágico e irônico do momento. De início, na festa ducal, os personagens tinham figurinos de época, mas isso passou logo, por que não está na moda, e logo ressurgiam vestidos como nos anos de 1950, triste lugar comum das montagens atuais. Como ocorre frequentemente, tudo o que é nuançado, fino, sutil na obra original, vem assinalado com grosso lápis vermelho pelo encenador.

Ainda assim, houve belos momentos: o segundo ato, em que o palácio de Mântua era sinalizado por uma escadaria e, sobretudo, a cena final, com Rigoletto tendo em mãos o vestido ensanguentado da filha, foram particularmente tocantes.

A urgência pela originalidade a qualquer custo pode fazer com que grandes diretores, como Decker e Guth, se esqueçam da expressividade teatral fundida com a obra, para montar uma ideia. É uma pena. Os libretos deveriam ser tomados como as partituras, com rigor, sem dúvida reinterpretados, mas nunca sacrificados.

De qualquer forma, resta a música. No Holandês, o protagonista foi o polonês Tomasz Konieczny, dono de forte autoridade vocal, impondo-se com virilidade convincente. Ricarda Merbeth, mozartiana no início de carreira, hoje Isolda e Brünnhilde, possui voz poderosa, mas de timbre suave. Constituíram um casal homogêneo, e de mesma elevada qualidade. Um pouco abaixo, estavam o Daland, de Günther Groissböck, com imprecisões nas notas agudas, e o Erik de Michael Weinius, cantando de maneira um pouco metódica demais. O jovem tenor inglês Thomas Atkins, como o Piloto, fez lamentar que seu papel fosse tão curto.

A regência do finlandês Hannu Lintu, que estreava na ópera de Paris, foi ideal. É verdade que a orquestra e o coro são de qualidade vertiginosa. A clareza dos sons, exaltados pela acústica analítica da sala, era um esplendor. Eletricidade, emoção na regência, com um finíssimo fraseado, os instrumentos se distinguiam em suas texturas.

A distribuição do Rigoletto foi um sonho. Ludovic Tézier é certamente o maior barítono de nossos dias, em todo caso, o mais fabuloso Rigoletto que se possa imaginar. O timbre sombrio e caloroso ultrapassa facilmente o palco e a orquestra. Nele, o cantor modela com finura cada palavra, transmitindo sentido dramático e emoção profunda. Com um registro perfeitamente homogêneo, com ataques poderosos e pianíssimos perfeitos, seu fraseado adquire uma intensidade que a elegância nunca abandona.

Fusionou de maneira perfeita com Nadine Sierra, a grande Gilda da atualidade. Timbre caloroso, dourado, capaz de agudos precisos, que oferecem a impressão de naturalidade e facilidade. Linda e delicada, ela é uma Gilda absoluta. Junto a Tézier, era pura mágica musical que brotava.

Dmitry Korchak, tenor russo, de sonoridade muito homogênea, impôs com autoridade seu duque, mesmo se, por vezes, os agudos eram sustentados com algum esforço. Goderdzi Janelidze, baixo georgiano que estreava na Ópera de Paris, impressionante, foi o parceiro de Tézier como Sparafucile, num dueto de antologia. Justina Gringyte, lituana, foi uma forte Maddalena, de voz redonda, escura, flexível, num belo contraste com a de Gilda. E o romeno Bogdan Talos, que estreava também na ópera de Paris, no brevíssimo papel de Monterone, impressionou com sua poderosa maldição.

Giacomo Sagripanti foi capaz de belas dosagens de timbre, fazendo sobressair as cores da partitura, embora sua escolha de andamentos, por vezes arrastados, por vezes muito precipitados, pudesse surpreender.

De qualquer forma, Wagner e Verdi em duas excelentes apresentações.

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Cena de ‘Rigoletto’, da Opéra de la Bastille (divulgação, Elisa Haberer, OnP)
Cena de ‘Rigoletto’, da Opéra de la Bastille (divulgação, Elisa Haberer, OnP)

 

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