Artes Vertentes: dez anos de história construída por meio do diálogo

por Camila Fresca 04/12/2021

TIRADENTES (MG) - Há dez anos, recém retornado ao Brasil após muitos anos na Europa, o pianista mineiro Luiz Gustavo Carvalho e sua esposa, a estudiosa de literatura portuguesa Maria Vragova, decidiram criar um festival no qual diferentes manifestações artísticas pudessem confluir e dialogar, a partir de um mote comum. Por seu patrimônio arquitetônico e sua localização privilegiada entre as capitais Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo, Tiradentes, no sul de Minas Gerais, foi o local escolhido.

E quem diria que a iniciativa, criada por dois ‘forasteiros’ numa cidade de menos de dez mil habitantes, completaria dez edições ininterruptas, inclusive enfrentando uma pandemia mundial por dois anos seguidos? Havia muito a se comemorar, portanto, no concerto emocionante e cheio de homenagens que marcou a abertura da décima edição do Festival Artes Vertentes, no último dia 25 de novembro. Na Igreja São João Evangelista, Gustavo Carvalho e Cristian Budu fizeram um recital a quatro mãos tocando Mozart, Schubert e Brahms. 

Cristian Budu e Gustavo Carvalho durante recital na abertura do festival [Divulgação/Marlon de Paula]
Cristian Budu e Gustavo Carvalho durante recital na abertura do festival [Divulgação/Marlon de Paula]

No bis, um coral de Bach simbolizou a admiração e o agradecimento de ambos ao pianista Nelson Freire. Em seguida, foram homenageados moradores que desde o início apoiaram o evento. Também subiu ao palco a socióloga Bárbara Freitag que, ao lado do diplomata Sérgio Paulo Rouanet (criador da lei brasileira de incentivos fiscais à cultura), são os homenageados do festival em 2021, por ocasião da criação do Instituto Rouanet, com sede em Tiradentes.

Ainda que tenhamos numerosos festivais dedicados ao cinema, literatura ou música, são poucos os que se propõem englobar mais de uma área. Além disso, a música clássica muitas vezes opera num nicho específico e isolado das demais artes. Um festival que pretenda, portanto, promover um diálogo entre artes tendo a música clássica como eixo motor é algo mais do que bem-vindo.

No início viabilizado por meio de mecenato privado e financiamento coletivo, o Arte Vertentes foi ganhando solidez na medida em que fincou raízes na cidade. De um lado criando, em 2015, uma associação de amigos que acredita na causa e cujos integrantes colaboram de várias maneiras: com trabalho voluntário, aportes financeiros, hospedagem de artistas etc. Essa raiz, por outro lado, também se espalhou como um trabalho contínuo que o festival desenvolve com a comunidade local: mais de cem crianças participam de um projeto sociocultural que oferece oficinas de artes visuais e música, incluindo aulas de iniciação musical e um coral.

Oficina promovida pelo Festival Artes Vertentes, em Tiradentes [Divulgação/Marlon de Paula]
Oficina promovida pelo Festival Artes Vertentes, em Tiradentes [Divulgação/Marlon de Paula]

No ano passado, mesmo em meio a um momento tenso da pandemia, Gustavo Carvalho e Maria Vragova decidiram manter o festival como uma trincheira de resistência ao desmonte cultural que o Brasil tem atravessado. As atividades aconteceram presencialmente em Tiradentes, com restrição de público, e foram disponibilizadas nas plataformas virtuais. Assim é que foi possível conferir, por exemplo, a impressionante performance Mil litros de preto, de Lucimélia Romão, que trata do genocídio da juventude preta como política de estado – uma breve entrevista com a artista está disponível no canal de Youtube do festival

Foi também ano passado que um mote curatorial foi definido para as edições 2020-2021: a água. Gustavo afirma que a morte de dois ecossistemas importantes, num período curto, em Minas Gerais – as tragédias de Mariana e Brumadinho – tornaram esse tema urgente. 

Além do concerto de abertura, essa primeira fase contou com a inauguração da exposição Brasil, Hy-Brasil, do jovem artista visual Eduardo Hargreaves, que trabalha com pintura, objetos e animações, e o início de quatro residências artísticas: dos ilustradores Marilda Castanha e Nelson Cruz, da ceramista francesa Mari Mael e do artista visual capixaba Rick Rodrigues. 

Detalhe de obra da exposição 'Brasil, Hy-Brasil', de Eduardo Hargreaves [Divulgação/Marlon de Paula]
Detalhe de obra da exposição 'Brasil, Hy-Brasil', de Eduardo Hargreaves [Divulgação/Marlon de Paula]

A décima edição do Artes Vertentes, no entanto, acontece também entre os dias 10 e 20 de fevereiro de 2022. A programação musical tem André Mehmari como compositor residente – obras pianísticas e camerísticas suas serão interpretadas pelos músicos do festival. Além de Cristian Budu e Gustavo Carvalho, os concertos contam com artistas como a soprano Eliane Coelho, a trompista norte-americana Alma Liebrecht, o oboísta brasileiro Alexandre Barros e o violinista holandês Daniel Rowland. 

O repertório abordado vai de Mozart a Benjamin Britten – incluindo a integral das sonatas para violino e piano de Villa-Lobos, numa homenagem ao centenário da Semana de Arte Moderna – e chega até a música contemporânea, com obras de George Crumb, Gavin Bryars e da coreana Younghi Pagh-Paan. A programação das demais áreas será anunciada em breve.

Para realizar um evento que engloba música, literatura, cinema, artes visuais e artes cênicas o Festival Artes Vertentes conta com uma equipe jovem e comprometida – alguns dos colaboradores estão lá há vários anos e vão evoluindo dentro do festival, à medida que avançam em seus estudos e dão início à carreira profissional. Conta ainda com o esforço apaixonado de seus idealizadores Luiz Gustavo Carvalho e Maria Vragova, e com o envolvimento entusiasmado de moradores locais. A soma desses elementos certamente explica o motivo de sua permanência.

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