Beethoven súdito do Algoritmo

por João Marcos Coelho 29/10/2021

Um tonitroante e “heroico” tutti fortissimo encerrou a primeira execução pública da décima sinfonia de Beethoven no último dia 9 de outubro na Alemanha. Imediatamente “Beethoven X’ – assim é chamado o projeto que envolveu musicólogos e tecnólogos especialistas em IA (Inteligência Artificial), visando “terminá-la” a partir de parcos compassos – já estava disponível nas plataformas de streaming. Beethoven jamais sonhou com uma plateia de bilhões de pessoas.

Confesso que fiquei com um travo amargo na garganta. Então era este o resultado da associação IA-Beethoven? Musicólogos providenciaram a cessão de todos os milhões de pentagramas agarrunchados feitos pelo compositor ao longo de sua vida. Mais: colocaram no liquidificador digital obras não só dos músicos que ele apreciava, mas praticamente todos os seus contemporâneos. Até uma pitada barroca foi acrescentada – Bach, naturalmente –, porque alguém sussurrou nos ouvidos do algoritmo que Beethoven costumava tocar prelúdios e fugas do Cravo Bem Temperado

Não quero parecer ludita, como os trabalhadores ingleses que na Revolução Industrial incendiavam as máquinas que lhes tiravam os empregos. Mas prefiro mil vezes a parceria Bach-Gounod à de Beethoven-IA. Explico. Bach, num lance de gênio, fez o primeiro dos prelúdios do Cravo, em dó maior, sem melodia, só com acordes arpejados. Dois séculos depois, o francês Charles Gounod compôs o que faltava, a melodia. E assim nasceu a Ave-Maria de Bach-Gounod.

Não tenho conhecimentos técnicos para avaliar como o Algoritmo – juro que me sinto falando do Grande Irmão do 1984 de Orwell – processou esta imensa massa de dados. E o que estou repetindo é tão simples quanto o gesto de Gounod: o Algoritmo é perfeito, não erra, não sai da caixinha, não tece pontos fora da curva. É por isso que a audição dos quatro movimentos de “Beethoven-AI X” causa tédio. Não há surpresa.

E, cá entre nós, como bem explorou o pianista Alfred Brendel em vários de seus argutos artigos sobre música, a surpresa é o que nos atrai na arte. Mais um exemplo: como era o costume, Beethoven estreou obras díspares e de gêneros diversos na “Academia” que bancou em 22 de dezembro de 1808 no Theater der Wien. Não perca a conta: a Quinta e a Sexta sinfonias, a ária “Oh, Perfido” e um trecho da Missa opus 86, o Concerto para piano e orquestra nº 4, opus 58; a Fantasia para piano solo opus 77 e a Fantasia para piano, coro e orquestra, opus 80.

[Reprodução]
[Reprodução]

Um Algoritmo como o nosso ultrassofisticado parça de Beethoven X ficaria embasbacado diante da quinta e a sexta sinfonias, por exemplo, pois existe um gigantesco fosso entre elas. Quem ouve as duas na sequência tem um choque: na quinta, o tema do Destino martela nossos ouvidos incessantemente; na sexta, de repente Beethoven vira músico de programa e faz praticamente um poema sinfônico “pintando” a natureza (não à maneira do Vivaldi das Quatro Estações). Nada de imitação simplória da natureza, mas de exprimir suas sensações diante dela, hoje tão vilipendiada. Mas mesmo assim Beethoven coloca passarinhos, trovões e até a bonança pós-tempestade. O ilustre Algoritmo piraria, com certeza. 

Mas não foi só isso. Quem esteve no Theater der Wien naquela mesma Academia, em 1808, pôde fazer uma degustação do que seria a sinfonia provavelmente mais famosa da história da música, a Nona, que só estrearia em 1824, dezesseis anos depois. Beethoven ensaia ali o tema da Ode à Alegria, com piano, coro e orquestra. Nem vou falar de “Oh, Perfido” ou do quarto concerto para piano, por muitos considerado o mais impactante de seus cinco (me incluo entre seus devotos).

Se alguém te sussurrar que algum dia a IA chega lá e que algum maluco vai inventar um jeito de inocular em seus dispositivos o elemento surpresa, não acredite. Último detalhe: este embate é o confronto ontológico da ficção científica, de ontem, de hoje – e de amanhã também.

Li o artigo de Jan Swafford sobre “Beethoven X”. Ele é autor de um livro de mil páginas sobre Beethoven que existe em português e é ótimo. Não porque seja imenso, mas porque é informativo e analítico na medida exata. Pois a revista VAN convidou-o para analisar a “décima” de Beethoven. Pelo título percebe-se o conteúdo: “A Inteligência dos Corpos – as falhas filosóficas e musicais de Beethoven X: The AI Project”. É só ir ao site da revista. 

Uma degustação de Swafford: “A inteligência artificial pode imitar a arte, mas não pode ser expressiva nisso porque, além da definição da palavra, ela não sabe o que é expressivo (...) a única inteligência verdadeira e significativa está em um corpo e, da mesma forma, a única criatividade verdadeira e significativa. Na palavra ‘corpo’ incluo a mente, contida em um cérebro. E, como já foi dito, o cérebro é a coisa mais complexa do universo”.

Para ouvir “Beethoven X”, basta ir às plataformas de streaming.
 

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João Marcos, como sempre, é preciso. Esse projeto "IA Beethoven X" é um desserviço tanto à obra de Beethoven quanto à arte assistida por Inteligência Artificial. "Fazer parecido ou copiar o estilo" é um uso ingênuo da IA. E não é uma ideia nova. Basta consultar no YouTube as inúmeras experiências de David Cope que durante 50 anos, até sua aposentadoria recente, desenvolveu na sua universidade projetos acadêmicos visando imitar o estilo de compositores tais como Vivaldi, Chopin e o próprio Beethoven usando programas de computador. E os resultados de Cope nunca foram artisticamente convincentes, e provavelmente nunca pretenderam ser. Tratava-se de desenvolver ferramentas para que, algum dia, artistas de carne e osso pudessem criar com elas. Porque atrás de todo programa de computador há sempre um ser humano escrevendo o programa. Plagiando o filme Amadeus, se o programador é um Salieri, a música nunca será de Mozart.

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Excelente reflexão sobre IA Beethoven X. Uma construção musical deste tipo não é surpresa para mim. Afinal, estamos vivendo na "sociedade líquida", lembrando o derradeiro livro publicado de Umberto Eco (Record 2017). "Crises ideológicas, crises políticas, individualismo desenfreado, máscaras políticas, vida simbiótica com nossos celulares - este é o conhecido ambiente em que vivemos: o de uma sociedade líquida, onde nada parece fazer sentido ou ter sequer algum significado". Podem estar certos que muitas outras experiências desta natureza virão. Infelizmente, muita gente vai bater palmas para isso. Leonardo Godefroid, de Ouro Preto, MG.

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