Memória desprezada

por Luciana Medeiros 22/04/2021

Nova direção do Theatro Municipal do Rio de Janeiro exonerou a historiadora Fátima Gonçalves, que capitaneou nos últimos oito anos o centro de documentação da instituição

A qualidade da vida artística de uma instituição, de uma cidade, de um país tem profunda relação com o respeito e a preservação do seu passado. Conhecer e entender as circunstâncias e os caminhos pelos quais passamos é fundamental – inclusive para contestar e renegar esse mesmo passado. Não há futuro sem passado, dizem. Poderia ser mais ampla essa afirmação: não há identidade sem história.

Nesta semana, foi exonerada do Theatro Municipal do Rio de Janeiro a historiadora Fátima Gonçalves, que capitaneou nos últimos oito anos o Centro de Documentação. Um mar de protestos inundou as redes, reunindo depoimentos pessoais de artistas da casa, de colegas e de pesquisadores de outras instituições.

Testemunhei diversas vezes a capacidade e o afeto de Fátima, transitando pelos ambientes algo inadequados – o porão do edifício histórico – onde o CEDOC foi instalado. Ali está uma parte única do Brasil, entre bustos, placas, arquivos, mobiliário, figurino, milhares de recortes, programas, documentos, que ela reuniu e conservou – às custas de, eventualmente, dinheiro do próprio bolso. 

Fátima vinha organizando e mantendo o CEDOC sem descanso, recolhendo material e organizando o acervo. Praticamente sozinha, com equipes heroicas. Mesmo durante a pandemia, tratou de lançar seis e-books gratuitos sobre compositores e coreógrafos, e de colher depoimentos; em julho celebrou a disponibilização de 15 mil documentos referentes ao período de 1909, ano da inauguração do Municipal, a 1965. Não era raro encontrá-la ajoelhada, de luvas grossas e óculos de proteção, fazendo limpeza pesada de materiais. “No final de 2019, a equipe do Centro de Documentação organizou o acervo de partituras do Arquivo Musical”, conta ela. “Hoje, mesmo com a pandemia, a equipe já catalogou mais de 300 partituras de compositores brasileiros e italianos. Ressalte-se que são apenas quatro pessoas para dar conta dos dois setores!”.

Decisão provocou protestos indignados de colegas e artistas. Não por acaso. O trabalho com o acervo é uma boia importantíssima no mar da irrelevância geral

É irônico que ela seja exonerada nesse momento, já que a nova presidente, Clara Paulino, vem da área de museus. Dentre os protestos nas redes, há textos como o de Karin Schlotterbeck, bailarina da casa que faz um trabalho voluntário no Centro de Documentação, em carta aberta dirigida à presidente: “Este Theatro não é sucata, não pode e não deve ser desmantelado. Sua atitude equivocada demonstra que pouco se importa ou não possui o devido conhecimento sobre a importância do CEDOC e, principalmente, do imenso desenvolvimento que Fátima alavancou com a valorização da memória e do cuidado com um acervo que abriga centenas de registros artísticos desde sua fundação”.

Sim, cada novo chefe costuma trazer sua equipe. No caso do Municipal carioca, entretanto, temos testemunhado uma luta complicada para manter à tona o equipamento cultural. Não foi à toa que a exoneração imotivada de Fátima Gonçalves provocou protestos indignados de colegas e artistas – o trabalho com o acervo é uma boia importantíssima no mar da irrelevância geral. De novo: o presente e o futuro dependem do passado.

Além de Fátima, outras pessoas dedicadas e competentes vêm sendo afastadas, como Bruna Leite, responsável há anos pelos projetos educativos. No lugar desses profissionais, gente com pouquíssima ou nenhuma experiência na área.

Devagarzinho, silenciosamente, o esquecimento mina a identidade. Nesses tristes tempos, a relevância da história, da memória precisa ser mais e mais enfatizada. É o universo simbólico que nos une, o fio de prata que ameniza a solidão e cria a sensação de comunidade. E, ao dispensar ou desvalorizar os legados, corre-se o risco de ficar eternamente inventando a pólvora – e achando que isso basta. Pior: inventando uma roda quadrada, fornecendo informações erradas ou irrelevantes. Involuindo. Aí, sim, o futuro estará irremediavelmente comprometido.

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Fatima Gonçalves [Divulgação]
Fatima Gonçalves [Divulgação]

 

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