O problema não é a ópera. E uma leitura do episódio Pinchas Zukerman

por João Luiz Sampaio 05/07/2021

A Boston Lyric Opera criou uma plataforma digital chamada Operabox.tv. Não é apenas um espaço para divulgar suas produções. Ela se apresenta como um Netflix do gênero, propondo-se a abrigar espetáculos da casa, mas não só. A primeira leva disponível dá bem a medida. Uma encenação histórica da Ariadne auf Naxos, de Strauss, e uma série de novos projetos, como a ópera-minissérie Desert Inn e uma La bohème, de Puccini, filmada em Nova York durante a pandemia por uma companhia de Hong Kong. 

Sim, uma ópera-minissérie, ou minissérie em formato de ópera. É um projeto idealizado pela compositora Ellen Reid, vencedora do Prêmio Pulitzer por Prism, apresentada pelo Theatro Municipal de São Paulo antes do fim do mundo; pelo diretor James Darrah; e pelo escritor Christopher Oscar Peña.

São oito episódios, que se passam no Desert Inn, um hotel perdido no meio do nada no oeste americano, para onde as pessoas vão afim de se reconectar com aqueles que amam – um cenário muito mais misterioso, sobrenatural e, acima de tudo, menos romântico do que a sinopse pode sugerir.

O primeiro episódio foi escrito por Reid e, para cada um dos demais, foi convidada uma dupla de compositores e escritores. Forma-se um mosaico, as histórias vão se sucedendo e se encaixando, ou não. Essa é a proposta. Como nas séries para televisão.

 

La bohème é uma produção da companhia More than Musical, baseada em Hong Kong e criada por uma milionária apaixonada por ópera. A proposta do grupo é apresentar versões de até uma hora e meia de grandes óperas, abrindo espaço para jovens talentos e para maior diversidade na escolha de artistas. O foco é se aproximar do público.

O projeto foi filmado durante o inverno 2020/2021 em Nova York, em locações como Chinatown, Flushing e Coney Island. A história é narrada como se acontecesse hoje: nas cenas em público, os cantores usam máscaras, álcool em gel. O elenco é composto de cantores asiáticos, negros e latinos. O acompanhamento é todo feito ao piano. A direção é da cineasta, atriz e artista plástica norte-americana Laine Rettmer.

Há alguns pontos de contato entre as duas produções. Ambas resultam de parcerias. Desert Inn une forças da Boston Lyric Opera com a Long Beach Opera. La bohème é o resultado da colaboração da More than Musical com a Opera Columbus, a Opera Omaha e a Tri-Cities Opera.

E, claro, se aproximam da ópera com propostas inovadoras.

Cena de 'Desert Inn' [Divulgação/Boston Lyric Opera]
Cena de 'Desert Inn' [Divulgação/Boston Lyric Opera]

O aggiornamento de La bohème não é uma novidade. Mas, para uma companhia acostumada a espetáculos presenciais, lançar um longa-metragem em plena pandemia não é um feito pequeno. Mais: fazer isso pensando na questão da diversidade, e colocando seus personagens em meio justamente à pandemia, mostra uma capacidade de reação e um olhar para o mundo à nossa volta que nem todos tiveram. [E aqui é preciso citar a experiência do Festival Amazonas de Ópera, que encomendou três óperas e fez delas filmes – um deles, uma animação – em uma iniciativa que com certeza será lembrada como histórica quando, lá na frente, olharmos para como o nosso meio da ópera reagiu à pandemia.] Desert Inn, por sua vez, é um achado. Uma ópera pensada como se fosse uma série, um gênero hoje tão presente na vida das pessoas.

O mais importante: os dois projetos levam em consideração a potência da ópera como linguagem. 

Ninguém discute a importância de se buscar novos públicos, novas maneiras de se produzir, novas formas de se interpretar a ópera, à luz da contemporaneidade. Mas isso pode ser feito de dentro para fora, ou seja, encontrando no próprio gênero a riqueza que o permite se reinventar perante novos desafios.

A opção é repetir o eterno mantra de uma forma de arte elitista, parada no século XIX, que pouco tem a nos dizer. É a saída mais fácil, com certeza. Mas nunca será possível recolocar a ópera no cenário artístico sem reconhecer que o problema não está nela, mas na falta de disposição real de, a partir do que ela tem a oferecer, propor novas possibilidades - e um novo sentido para os teatros que a abrigam.

Cena de 'La bohème', produção da companhia More than Musical [Reprodução/Facebook More Than Musical]
Cena de 'La bohème', produção da companhia More than Musical [Reprodução/Facebook More Than Musical]

Pinchas Zukerman

Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Mas a coluna estava pronta quando o meio musical recebeu a notícia, na semana passada, de acusações feitas contra o violinista Pinchas Zukerman. E o assunto pareceu importante demais para ser deixado de lado. 

Durante uma aula em um simpósio promovido pela Juilliard School of Music de Nova York, Zukerman fez comentários “culturalmente insensíveis” ao orientar duas alunas de ascendência japonesa. Primeiro, disse que coreanas como elas não sabem cantar. Corrigido sobre a nacionalidade, não se emendou: japoneses também não sabem. E aproveitou para imitar o que considera um canto asiático. A aula acontecia on-line, mas ainda assim o constrangimento foi geral. E, antes do encerramento, Zukerman voltou ao assunto. Coreanos, insistiu, não sabem cantar. É algo que não está em seu DNA. 

A Juilliard resolveu retirar da internet a aula. Zukerman se desculpou. Estava, disse, “tentando comunicar algo a essas duas incrivelmente talentosas musicistas, mas as palavras que usei foram culturalmente insensíveis”. “Estou escrevendo pessoalmente a elas para me desculpar. Não posso desfazer o que aconteceu, mas ofereço desculpas sinceras. Aprendi algo de valioso com esse episódio e farei melhor no futuro.”

Zukerman reconheceu seu erro. Na Nibelheim das caixas de comentários em sites que deram a notícia, ou então em redes sociais, porém, não houve pano suficiente para passar em cima de seus comentários. Não vou reproduzi-los porque não é preciso: um resumo bem apurado deles veio na forma de um texto escrito por um aluno também presente à aula, que partiu em defesa do professor (leia a íntegra do texto, em inglês, aqui).

LF, como se identifica, afirma que a multidão “woke” (termo que define aqueles que, em sua relação com o mundo, estão conscientes de problemas sociais como o racismo e a desigualdade) jamais encontrará espaço na música clássica. Isso jamais será tolerado. Porque o mundo da música clássica é diferente do mundo lá fora.

“Nós somos treinados em um alto nível e seguimos nossos professores e o nosso treinamento, assim como nossos maestros e líderes de naipes. A maior parte de nós não deixa comentários de maestros ou outros músicos nos afetar. É importante ter a certeza sobre suas habilidades e utilizá-la para promover uma autoestima saudável”, afirma.

O texto segue, ressaltando que há grandes professores que nem sempre são capazes de se fazer entender de maneira clara. Mais: “Zukerman é perfeito? Não. Ele tem importantes lições a nos passar? Sim.” LF propõe ainda dois argumentos: a culpa pela confusão não foi do violinista, mas da organização da produção, que deveria ter informado a ele a nacionalidade das violinistas; e, sobre elas, o problema é que a interpretação que as duas farão dos comentários de Zukerman será influenciada pela gritaria que o episódio gerou na internet e no meio musical.

Traduzindo, em outras palavras, o que diz LF. Sobre as vítimas, bem, elas não são capazes de decidir por si próprias se estão ou não ofendidas. E, aliás, pouco importa, porque se elas se sentiram ofendidas, não há ninguém a culpar além delas próprias e de uma suposta falta de autoestima. Sobre Zukerman, o que LF nos diz é que o importante é ser um bom músico – o que lhe permite fazer comentários ofensivos. Ofensas e preconceitos, afinal, são normais no mundo da música clássica. E é assim que deve ser. Se você se sente ofendido, culpa sua. Ou de qualquer outra pessoa que não o agressor: até mesmo uma produtora que supostamente deveria ter avisado Zukerman da nacionalidade das violinistas entrou na dança. O que vocês esperavam? Que ele perguntasse a elas de onde eram? Absurdo. Mais fácil supor que elas eram coreanas. Afinal, não sabiam cantar.

Seria patético se não fosse dolorosamente real. A ideia de que o talento, a genialidade de um músico é passe livre para qualquer tipo de comportamento é muito mais presente no meio musical do que gostamos de admitir. Quando a notícia de um assédio ou de um discurso racista aparece, costuma ser seguida de um “mas” que logo elenca todas as conquistas artísticas do suspeito. E, enquanto este “mas” existir, temos um problema.

Aconteceu recentemente com James Levine, cujo histórico de assédio sexual a menores de idade foi exposto há dois anos; e com Plácido Domingo, que foi acusado por diversas cantoras de ter exigido favores sexuais em troca de ajuda profissional, ou pior, da certeza de que ele não as impediria de seguir com suas carreiras.

Nos dois casos, possíveis denúncias eram inviáveis pois os crimes já haviam prescrito. Levine, ainda assim, perdeu o posto no Metropolitan Opera e morreu sem nunca mais pisar em um palco. Domingo teve vários contratos cancelados, mas, desde o ano passado, voltou a se apresentar em teatros europeus com regularidade (nos EUA, segue banido).

Como deixar de lado a contribuição dos dois artistas? Essa é uma questão pessoal. Cada um faz com suas gravações de Levine e Domingo o que bem entender. Mas a questão aqui é outra, é aceitar que a realização artística não torna o artista livre de punição caso cometa crimes. Ela é justa? Não é? Não é o melômano que decide. Não é o diretor da orquestra, do conservatório. É a justiça. E para isso, é preciso que alguém os denuncie. E, aqui, não cabe a melômano algum decidir se alguém tem direito ou não a se sentir ofendido.

Não parece que será esse o caso de Zukerman. Ninguém falou em cancelamento. Ninguém falou em banimento. Ninguém falou em denúncia. Apenas ressaltou-se um erro. Mas o episódio e a reação da Juilliard mostram a importância desses temas, que precisarão ser enfrentados pelos profissionais e pelas instituições da música clássica e da ópera. Se um dia o abuso e o assédio moral foram aceitos como prática corriqueira, isso hoje pouco importa. Os tempos mudam. Precisamos seguir adiante. E repensar o modo como nos organizamos como sociedade e instituições. O passado nos ajuda a compreender o presente e aquilo que precisamos transformar. Mas não pode mais servir de desculpa. 

 

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