Pelo que seremos lembrados?

por João Luiz Sampaio 21/06/2021

O editorial do jornal Folha de S. Paulo do último domingo, dia 20, fala da “admirável capacidade do ser humano de se adaptar à adversidade”. O texto, “Para não esquecer”, referia-se à pandemia e à marca dos 500 mil mortos. E ao modo como não podemos, nessa busca por adaptação, normalizar a morte – e o descaso que a causa.

Logo pensei no nosso meio musical. E na forma como ele rapidamente se adaptou às condições impostas pela pandemia. Primeiro, correndo para a internet, depois repensando como a presença no palco poderia se dar.  

Só nos últimos dias, o público teve a chance de ver – nos teatros ou em casa – o início de um ciclo dedicado aos balés de Stravinsky pela Osesp; três estreias mundiais de obras de autores brasileiros, na Sala São Paulo, em Guarulhos e no Festival Amazonas – esta última, a ópera de um interessante jovem compositor, Piero Schlochauer (e a  terceira a estrear na programação do evento); um belo recital de música de câmara brasileira na Sala Cecília Meireles; as Valsas humorísticas de Alberto Nepomuceno, obra para piano e orquestra, na Casa da Ospa; o Coral Jovem do Estado cantando no Theatro São Pedro; a Orquestra Ouro Preto homenageando Duke Ellington.

E a próxima semana não deve ficar atrás, com mais Stravinsky, com Ricardo Castro solando Mozart e regendo Schubert com a Filarmônica de Minas Gerais; Sinfônica Heliópolis tocando no Auditório Ibirapuera; e até com a estreia de duas novas montagens operísticas: Renard, de Stravinsky, e Mozart e Salieri, no Theatro São Pedro – em uma montagem, pelas declarações de William Pereira, que não apenas segue os protocolos de segurança sanitária como os incorpora no própria discurso da encenação.

Não é preciso ser especialista para imaginar quanto trabalho tiveram esses e tantos outros grupos para se manter no palco. Os protocolos são apenas o primeiro problema – e a eles se segue a necessidade de se repensar a temporada, convidar novos artistas, mudar programas e assim por diante. Em muitos outros países não se viu nada parecido. Pelo contrário. Em especial nos Estados Unidos, houve em geral apenas silêncio. E espera.

A discussão sobre se e quando os espetáculos deveriam ou não ter retornado, à luz dos números da pandemia, existiu – assim como aquela a respeito do quanto cada grupo esteve disposto a se abrir para o novo e o diferente nessa presença no palco. Da mesma forma, o retorno da vida musical não deve nos enganar: a cadeia de produção foi afetada de maneira profunda e muitos profissionais levarão um bom tempo a se recuperar.

Mas o fato é que a capacidade de adaptação, do ponto de vista da difusão, foi rápida, mostrando que a música clássica soube, em geral, reagir mais rapidamente do que vários outros setores artísticos. Não é pouca coisa para um meio normalmente associado ao atraso (em alguns sentidos, justificadamente, mas essa é outra discussão).

A manutenção da atividade durante a pandemia veio normalmente com a percepção de que era preciso encontrar uma forma de sobreviver. E resistir. Fazer cultura no Brasil de hoje é com certeza uma forma de resistência contra a barbárie instalada no poder. E a arte tem um poder indiscutível na vida das pessoas. Mas, em um momento no qual chegamos à marca de 500 mil mortes, não há nada mais que poderíamos estar fazendo?

Nossas instituições musicais são importantes para o país. E, por isso mesmo, a pergunta é necessária. No Brasil de hoje, o presidente ignora as mortes, tantas delas provocadas por sua inação, e seus ministros relativizam a dor da morte. No Brasil de hoje, o governo questiona a importância de vacinas que podem salvar vidas. No Brasil de hoje, agentes governamentais falam abertamente em banir livros. Banir livros. No Brasil de hoje, mata-se aos poucos a atividade cultural por puro preconceito, ignorância, maldade. No Brasil de hoje, a democracia está em risco.

Não há nada que possa ser feito, no contato com o público, para contribuir abertamente com esse debate? Achamos mesmo que esse quadro não nos diz respeito? E que nada temos a dizer sobre a realidade à nossa volta? Será que não podemos fazer melhor do que isso?

Daqui a cem anos, as novas gerações vão estudar esse momento aterrador da nossa história.

Pelo que seremos lembrados?

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