Ubuntu, ‘O guarani’, Beethoven e a “ressignificação” da música clássica

por Nelson Rubens Kunze 22/11/2020

Se é verdade que reinventar a nossa atividade é um enorme desafio, hoje, em meio à pandemia, é possível reconhecer algumas iniciativas que lograram bons resultados

O Dia da Consciência Negra no Brasil de 2020 ficará marcado por um ato de barbárie: em Porto Alegre, um homem negro foi espancado e asfixiado até a morte. O assassinato, testemunhado passivamente por pelo menos 15 pessoas, foi perpetrado publicamente por seguranças de um supermercado Carrefour. Não tive coragem de apertar o play, mas a cena filmada por celulares está em todos os lugares. Tragédia, morte, luto. É inacreditável que em pleno ano 2020 o mundo ainda tenha de levantar uma bandeira dessas – mas, antes tarde do que nunca: vidas negras importam!

No meio da música clássica e da ópera, não é de hoje que nos esforçamos para nos conectar com a realidade que nos cerca para assim conferir uma nova importância para o setor. São exemplos disso os programas de integração social, como o Neojiba da Bahia ou o Baccarelli em São Paulo, que, para além do sucesso de sua missão de formação musical, mantêm corais e orquestras que interpretam em alto nível o grande repertório universal. 

Nos últimos 20 anos, no mundo inteiro, vários simpósios e encontros tiveram como objetivo o debate sobre a “ressignificação” de nossa atividade. Orquestras e teatros de ópera, que são mantidos com recursos públicos, são caros demais para que sua função se resuma ao mero papel passivo de depositários e difusores do patrimônio musical histórico. Não! Assim como também com os museus, orquestras e teatros de ópera devem estar articulados na comunidade, ser ativos e participativos, devem ter uma ação relevante na formação das novas gerações e no debate das questões contemporâneas. É assim que a cultura gera identidade e contribui para a construção de uma sociedade saudável, mais justa e solidária.

Pois o futuro da música clássica, da ópera e de toda a cultura depende dessa ressignificação. É verdade que hoje, também no Brasil, a grande maioria das orquestras já desenvolve programas de formação de público e muitas têm parcerias com escolas. Além disso, a Osesp, por exemplo, tem uma academia para formação de instrumentistas e a Filarmônica de Minas Gerais promove um concurso de composição e um laboratório de regência. Mas, diante das circunstâncias, é necessário reforçar ações de inclusão, de democratização do acesso, bem como adotar iniciativas que desmontem estruturas racistas e promovam a diversidade, como recentemente anunciou a Filarmônica de Nova York (leia aqui).

Se é verdade que reinventar (outra palavra corrente) a nossa atividade e a estrutura conservadora das grandes orquestras e teatros de ópera é um enorme desafio, hoje, em meio à pandemia que assola o planeta, é possível olhar para trás e reconhecer algumas iniciativas que lograram bons resultados. Quero destacar três.

Festival Internacional Ubuntu Vocalis

Tive o prazer e a honra de ser convidado para participar em uma mesa de debates do Festival Internacional Ubuntu Vocalis, o Fiuv, realizado em outubro passado, uma iniciativa do grupo da representação dos cantores negros do Fórum Brasileiro de Ópera, Dança e Música de Concerto, que contou com o apoio da Universidade de Campinas. 

Ubuntu é um conceito desenvolvido pelo arcebispo anglicano negro Desmond Tutu, que afirma que “a minha humanidade está inexoravelmente ligada a sua humanidade”. Como consta no material de divulgação do festival, “essa noção de fraternidade implica compaixão e abertura de espírito e se opõe ao narcisismo e ao individualismo”. Sob o lema “sou o que sou graças ao que somos todos nós”, o festival promoveu o encontro de alunos brasileiros com grandes cantores líricos negros, de destacada atuação aqui e no mundo.

Idealizado por quatro expoentes da vida musical brasileira – a soprano Edna D’Oliveira, a mezzo soprano Mere Oliveira, o barítono Michel de Souza e o violista Iberê Carvalho (“infiltrado” no mundo do canto, como brincaram) –, o Fiuv ofereceu master classes, rodas de conversa e mesas de discussão, todas on-line por meio da plataforma zoom.

Apenas para se ter uma ideia da importância e qualidade artística da iniciativa, cito aqui, em ordem alfabética, alguns nomes que participaram: Adriane Queiroz, Alba Bomfim, Ana Valéria Poles, Carmelo de los Santos, Edna D’Oliveira, Fábio Bezutti, Fabio Presgrave, Felipe Venâncio, Flavia Furtado, Ligia Amadio, Luiz Fernando Malheiro, Mar Oliveira, Marcos Aragoni, Marcos Tadeu, Marly Montoni, Mere Oliveira, Michel de Souza, Patricia Writzel, Priscila Bomfim, Ricardo Ballestero, Sávio Sperandio, Sebastião Teixeira, Tati Helene, Tereza Cristina, Tobias Volkmann... (Clique aqui para assistir aos vídeos do Ubuntu no YouTube.) 

A soprano Edna D’Oliveira (reprodução YouTube)
A soprano Edna D’Oliveira (reprodução YouTube)

O Guarani

Se o Ubuntu está na linha da formação e nasce de uma iniciativa “independente”, há um exemplo igualmente emocionante da área da difusão que vem de um organismo estatal, a Orquestra Sinfônica de Santo André. Liderada pelo diretor artístico Abel Rocha, a orquestra acaba de lançar mais uma pequena obra de arte, que é a “Micro-ópera O guarani” [a Ossa já realizou outras duas ótimas produções pandêmicas, as “Microestreias da quarentena” (leia aqui) e a “Trilogia trancafiada” (leia aqui)]. 

Este micro O guarani é uma animação em vídeo, com concepção visual da artista plástica Luisa Almeida, que, em pouco mais de 7 minutos, narra a história da ópera de Carlos Gomes em uma homenagem aos 150 anos de sua estreia no Scala de Milão. Com bom gosto, sensibilidade artística e uma ótima fluência, a obra traz os solistas Rosana Lamosa (Cecilia), Paulo Mandarino (Pery), Leonardo Neiva (Gonzales), Saulo Javan (Don Antonio) e Anderson Barbosa (Cacique), acompanhados da orquestra e do coro, todos gravados remotamente. A trilha sonora se completa com a abertura e o finale de um registro da ópera feito pela orquestra em 2017. Além de seu óbvio interesse musical, é uma joinha cinematográfica que encontraria espaço em festivais de cinema e mereceria exibição em nossos canais de televisão. Assista abaixo à micro-ópera O guarani:

 

Beethoven

Também espaços mais tradicionais souberam se adequar à nova realidade e, sem alterar muito as suas linhas de programação, fizeram a escolha correta de buscar soluções nas transmissões on-line. Entre eles destaco a Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, que a partir de suas transmissões na internet ganhou protagonismo nacional. 

Dirigida por João Guilherme Ripper, a Sala Digital ofereceu, entre outras atrações, ciclos de Beethoven que sem dúvida estão entre as melhores programações do ano. Importante que com isso, além de contribuir para a difusão do repertório clássico, a sala conseguiu manter a cadeia da produção musical brasileira. Também aqui, para dar uma ideia do nível de qualidade, tomo a liberdade de citar alguns dos artistas envolvidos (novamente em ordem alfabética): Aleyson Scopel, Cristian Budu, Eduardo Monteiro, Emmanuele Baldini, Érika Ribeiro, Felipe Prazeres, Gabriela Queiroz, Jean-Louis Steuerman, Leonardo Hilsdorf, Lucas Thomazinho, Pablo Rossi, Priscila Rato, Rosana Lanzelotte, Sérgio Monteiro... Se você perdeu, clique aqui, escolha um dos ótimos programas e assista.

Sérgio Monteiro interpreta Beethoven na integral das sonatas (reprodução)
Sérgio Monteiro interpreta Beethoven na integral das sonatas (reprodução)

Acredito que a música clássica e a ópera – como toda a cultura –, tenham um papel importante para a construção de um mundo mais justo, social e ambientalmente responsável. As criações de Bach, de Mozart, de Rossini ou de Verdi carregam os nossos valores e a nossa humanidade. A arte é dinâmica, viva e impulsiona transformações. E para isso as nossas orquestras e teatros de ópera têm à disposição um dos mais valiosos patrimônios da civilização.

[Texto editado em 24/11 para inclusão da informação de que a trilha sonora de O Guarani também contém trechos da abertura e do finale da ópera gravados pela orquestra em 2017.]

Leia mais
Notícias
Osesp altera agenda e retoma transmissões digitais ao vivo
Colunistas Mozart à portuguesa: um réquiem para a pandemia, por Irineu Franco Perpetuo
Colunistas De utopias e distopias, por João Marcos Coelho

 

Curtir

Comentários

Os comentários são de responsabilidade de seus autores e não refletem a opinião da Revista CONCERTO.

É preciso estar logado para comentar. Clique aqui para fazer seu login gratuito.