Um testemunho fundamental sobre a educação musical

por João Marcos Coelho 29/04/2024

Logo na Introdução do recém-lançado livro Afinação da interioridade (Editora Zain), o violonista, compositor e educador musical Kristoff Silva, 51 anos, inclui o subtítulo “Um relato pessoal”, em que o núcleo fundamental de seu livro “opera com dados de minha experiência no aprendizado de música e de canções”.

Uma experiência que não é só dele, mas de qualquer um que deseja estudar música não só no Brasil, mas nos países não-europeus ou hegemônicos como os Estados Unidos. Ele as chama de “algumas aparentes contradições (...) especialmente aquelas que emanam da fricção entre o aspecto intuitivo, inerente ao domínio da canção popular, e a vontade  de sistematização de sua abordagem no contexto da disciplina Percepção Musical”.

Trocando em miúdos, Kristoff dá seu testemunho como “alguém que se dedicou ao estudo de música em escolas especializadas mas, concomitantemente, aprendeu a tocar e cantar, pelo contato com diletantes, nas esquinas, calçadas, por imersão e imitação em um meio social repleto de canções”.

Ele se apressa a esclarecer que usa a palavra "diletantes" no sentido positivo, mas não precisaria fazer isso porque este sentimento se transforma numa reflexão riquíssima e de leitura obrigatória para todo educador musical – sobretudo os da chamada academia – que não se acomodam na fácil divisão entre a música clássica recheada de gênios e obras-primas e a dita música popular. Este tipo muito encontrado em corredores universitários mundo afora pinça alguns poucos iluminados que trafegam nas músicas populares e os salva – aos demais, imensa maioria, rechaça sem maiores problemas no seu dia-a-dia em sala de aula.

Por isso levas e levas de jovens músicos formados em excelentes cursos universitários acabam perpetuando este desprezo absolutamente incompreensível. O trabalho de mentes brilhantes como Luiz  Tatit ajuda a acabar com este tipo de preconceito.

Já na introdução deste livro, lembrei-me de depoimento do  compositor norte-americano Steve Reich, decano do minimalismo, ao lado de Philip Glass, hoje com 87 anos. Quando estudante de música, ele lembra que se sentia esquizofrênico: durante o dia, o cânone vanguardista europeu era martelado todo dia; e à noite, maravilhava-se e participava de sessões de jam sessions e curtia a música popular. Palavras semelhantes são escritas por Kristoff: “Esse convívio musical, pleno de canções, tinha, como contraponto, os momentos de escuta individual dedicada à música de concerto”.

Foi na matéria Percepção Musical no curso na Fundação de Educação Artística ligada à Escola de Música da UFMG, em Belo Horizonte,  que o trabalho paralelo como assistente do excepcional Grupo Uakti liderado por Marco Antonio Guimarães abriu-lhe de vez as perspectivas. 

Esta dicotomia levou-o não só a colocar no papel sua experiência pessoal, mas escrever um livro que revoluciona o ensino de percepção musical e ajuda a abrir os ouvidos não só dos alunos de cursos de graduação. É um manual para professores de educação musical, mostrando como a canção popular brasileira pode legitimamente ser utilizada na  musicalização de adultos. 

Seu instrumento é o violão. Vale a pena reproduzir estas reflexões: o instrumento “está intrinsecamente relacionado ao desenvolvimento da canção no nosso país. Não obstante sua importância na música internacionalmente associada ao Brasil, não se pode dizer que o estudo de violão, nos conservatórios e em boa parte das escolas de nível superior, esteja voltado para as especificidades do seu uso no contexto da música popular”.

E aí vem a denúncia do preconceito: “Com o argumento de que, pelo estudo do chamado ‘clássico’, criamos condições para o bom desempenho em qualquer outro tipo de música, e pretere-se o interesse pelo violão e por sua presença no mundo das canções, muitas vezes o principal motivador do ingresso do estudante na escola. Assim, o aprendizado desse instrumento, sobretudo no ensino em escola especializada, replica o paralelismo dos caminhos que um estudante de música no Brasil percorre quando decide por uma formação escolar sem abandonar a vivência das ruas”.

Kristoff Silva [Reprodução/YouTube]
Kristoff Silva [Reprodução/YouTube]

 

Kristoff é cristalino em seus objetivos – e os realiza com notável precisão e acerto – neste livro. Ele quer criar “possibilidades de reformulação das propostas musicalizadoras para adultos e, talvez, contribuir de algum modo para a disciplina de Percepção Musical nas escolas especializadas”. E anota que “não é fácil construir um arcabouço teórico que permita o delineamento, o estudo e a apreciação crítica da produção cancional no Brasil, desde o seu surgimento até os dias de hoje”.

Nesta altura, Kristoff é mais amplo e direto em seu raciocínio: “Considerar esta dificuldade de sistematização a única razão para que a canção não ocupe seu devido lugar nas escolas de música seria ignorar os efeitos do colonialismo e de um racismo estrutural evidente e excludente”.

Ele repete que sua proposta refere-se à musicalização de adultos. Mas tenho firme convicção de que ele pode ser aplicado na musicalização infantil. Como, aliás, com outras premissas, porém muito próximas e afins às de Kristoff, vem fazendo outro educador musical de exceção no Brasil, Carlos Kater. 

A leitura deste livro excepcional me lembrou uma entrevista que fiz em 2016 com o compositor uruguaio Coriún Aharonian, figura decisiva não só como compositor contemporâneo mas também como educador musical, que nos deixou em 2017, aos 77 anos. Uma de suas respostas, não publicadas naquela entrevista, foi esta: 

“Em artigo de 1997, o arquiteto mexicano Alfonso Ramírez Ponce relembra uma discussão sobre identidade nos países latino-americanos em relação à metrópoles, na qual foi mencionada a necessidade imperiosa de rejeitar o conceito de periferia: ‘Diante de tal argumento, pareceu-me ouvir entre sons um fragmento de uma canção que César Isella, músico argentino, cantou há alguns anos'. Há muitos que falam de mudanças mas não querem mudar. Eles nos vendem coleiras novas, mas o cachorro continua o mesmo. Na verdade, o problema maior não é se somos ou não periferia dos países centrais. Somos sua periferia, gostemos ou não. Este não é o problema. O problema subjacente é que, em vez de nos vermos – de dentro – como o nosso próprio centro, nos vemos como eles nos veem – de fora –, como sua periferia. Se nos colocarmos no nosso lugar, naquela que deveria ser a nossa única perspectiva, os países ditos 'centrais' tornam-se a nossa periferia e, então, a nossa atitude poderia parafrasear a referida canção dizendo que...o importante é não mudar de coleira: pare de ser um cachorro”.   

Não por acaso, por aqui a expressão é “complexo vira-lata”. Já está mais do que na hora talvez não de trocar o cachorro, mas de deixar dois cachorros conviverem em paz e igualdade.

[O livro 'Afinação da interioridade' está disponível na Loja CLÁSSICOS; clique aqui]

Capa do livro Afinação da Interioridade (Editora Zain)

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