Life is short, Mahler isn’t... (ou a construção de uma orquestra)

por Nelson Rubens Kunze 28/09/2018

Com muito prazer aceitei o convite de ir conhecer de perto o trabalho da Orquestra Sinfônica do Estado do Espírito Santo (Oses). O avião aterrissou em Vitória às 14 horas da última quarta-feira, dia 26, e no aeroporto já encontrei o maestro Helder Trefzger, que veio me buscar. Com sua habitual e contagiante simpatia (e uma camiseta branca que estampava a frase “Life is short, Mahler isn’t...”), Helder já foi contando, no carro a caminho do hotel, sobre o trabalho da orquestra, da qual é diretor artístico e regente titular há 26 anos. Trata-se de um conjunto ligado à Secretaria da Cultura do governo do estado do Espírito Santo, com 35 músicos servidores concursados e mais 50 instrumentistas contratados por períodos de dois anos. “Não é o ideal, mas funciona”, comenta Helder, que desejaria ter a orquestra vinculada a uma Organização Social. “E como a cada dois anos os músicos passam por uma nova audição, há um constante aprimoramento técnico do grupo”, complementa.

Vista da cidade de Vitória, ES [Revista CONCERTO]
Vista da cidade de Vitória, ES [Revista CONCERTO]

Helder Trefzger, que nasceu no Mato Grosso do Sul, chegou a Vitória em 1992. A pequena orquestra de então estava sem maestro e a Secretaria, consultando o meio musical, escolheu Helder, que então trabalhava em Belo Horizonte, no Palácio das Artes. A recomendação viera do maestro David Machado, com quem Helder havia estudado e com quem trabalhava como assistente (“ele foi o meu grande mentor”). Na época, a orquestra do Espírito Santo estava desestruturada e desfalcada. “Tínhamos 5 flautas, mas nenhum oboé. E o nível dos músicos era muito variado, não havia nenhum equilíbrio”, relembra. De lá para cá, o trabalho desenvolveu muito, “mas foi um processo lento, sempre condicionado pela situação econômica e financeira do estado e pelo interesse dos governos”.

Helder também conta de outro grande e permanente desafio, que é o de uma sede para a orquestra. Em sua história, a Oses nunca teve uma sede própria. Ocupou por algum tempo o tradicional Teatro Carlos Gomes, no centro da cidade, e, nos últimos anos, ganhou um espaço no Parque Botânico da Vale. Fomos visitá-lo no dia seguinte. A sala de ensaios é boa, tem ar-condicionado e tratamento acústico, e o local está dentro da natureza, em meio à floresta, com segurança, estacionamento, lanchonete e toda a infraestrutura do parque. Ainda assim, o espaço emprestado não representa uma solução definitiva. A orquestra aguarda a finalização do grande e moderno Cais das Artes (projeto de Paulo Mendes da Rocha), cujo esqueleto estrutural foi concluído, mas cuja finalização está embargada juridicamente há alguns anos. Nele, além de um teatro, haverá também dependências e uma sala de ensaios reservadas para a Oses. 

A Orquestra Sinfônica do Espírito Santo também não escapou da crise brasileira dos últimos anos e foi obrigada a readequar a sua programação. Ainda assim, a Oses continua sendo uma das poucas orquestras brasileiras que apresentam (e cumprem!) uma temporada anual de concertos anunciada antecipadamente (clique aqui para conferir a temporada 2018). Todos os meses, a orquestra realiza em média dois programas, com repertórios variados. No mês passado, por exemplo, a Oses participou das homenagens prestadas ao compositor Edino Krieger, tocando o seu Concerto para violoncelo com o solista Antonio Menezes, sob direção do maestro Leonardo David, regente adjunto do grupo. Como o Teatro Carlos Gomes encontra-se fechado para reformas, os concertos têm sido realizadas prioritariamente no Teatro Sesc Glória.

E foi também no Sesc Glória a apresentação a qual assisti. O noite começou com o Concerto para trompa nº 4 de Mozart, tendo como solista Luiz Garcia, um dos mais destacados instrumentistas brasileiros da atualidade (ele é trompista solo da Osesp). Logo no ataque da orquestra, já foi possível perceber o cuidado na interpretação e o rigor estilístico. Tocando de cor, com técnica apurada e som cheio e bonito, Luiz Garcia apresentou belos solos em um nível geral muito bom. 

Orquestra Sinfônica do Espírito Santo e maestro Helder Trefzger [Revista CONCERTO]
Orquestra Sinfônica do Espírito Santo e maestro Helder Trefzger [Revista CONCERTO]

Mas a grande obra da noite foi a Sinfonia nº 5 de Mahler, partitura desafiadora para qualquer orquestra (a Oses já a tocou uma vez antes, além da Primeira e da Quarta). Com gestos precisos e bem marcados, o maestro Helder Trefzger logrou construir os diversos arcos dramáticos, garantindo a organicidade do discurso musical. A interpretação foi boa e consistente, com a orquestra abordando com competência as diversas atmosferas dessa rica partitura – desde suas passagens de energia explosiva aos momentos de mais puro lirismo.

A noite terminou em um restaurante, degustando uma autêntica moqueca capixaba. “Isso aqui está muito bom!”, exclamei feliz. “É, todo mundo gosta”, replicou Helder, e brindamos pela Orquestra Sinfônica do Espírito Santo.

[Nelson Rubens Kunze viajou à Vitória e assistiu ao concerto a convite da Orquestra Sinfônica do Espírito Santo.]

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