Liberdade, ousadia e formação de qualidade

por Luciana Medeiros 01/05/2023

Berenice Menegale celebra a produtiva atuação da Fundação de Educação Artística, sediada em Belo Horizonte, que completa 60 anos

Berenice Menegale reúne características aparentemente paradoxais: é suave na voz, nos gestos e no olhar, mas tem uma determinação férrea e uma resistência de aço. Aos 89 anos, completados no dia 1º de janeiro de 2023, ela se prepara para celebrar os 60 anos de uma de suas realizações artísticas, pessoais e sociais: a Fundação de Educação Artística (FEA), sediada em Belo Horizonte. No dia 7 de maio, um concerto da série Manhãs Musicais – que marcou a inauguração do longevo projeto – dá a partida para a festa e tem como destaque Nabila Dandara, soprano, ex-aluna da FEA que acaba de se diplomar no Conservatório Benedetto Marcello, em Veneza. Os 60 anos da FEA também serão vistos e revistos numa mostra multimídia do acervo na sede em Belo Horizonte, mostrando década a década os projetos e as iniciativas que responderam a ideias e necessidades de cada tempo.

Em conversa por vídeo com a Revista CONCERTO, Berenice repete alguns conceitos com a tal doce determinação – e deles o mais constante, certamente, é o de liberdade e inovação. “Sou sobrevivente do grupo que começou tudo isso”, conta ela, referindo-se ao núcleo inicial, que tinha Eduardo Hazan, Clara Paes Leme, Sergio Magnani, Venicio Mancini e Vera Nardelli. “Foram se juntando muitos outros em consonância com o que pensávamos, mas nossas propostas inovadoras, privilegiando a música moderna, dos nossos tempos.”

Por liberdade, Berenice quer enfatizar a autonomia que a fundação sempre prezou e manteve – autonomia em relação aos governos em qualquer instância e também a direcionamentos de financiadores privados. A vida de intérprete teve sólida formação: estudou no Brasil com Pedro de Castro (aluno de Henrique Oswald), na França (a conselho de Guiomar Novaes), na Suíça e na Áustria – ela se diplomou pela Academia de Música de Viena, em 1953, com orientação do pupilo de Busoni Jozéf Turczynski. “Mas ali eu já começava a sentir necessidade de não ser só pianista. Queria ser mais útil. Comecei a imaginar em Belo Horizonte, então muito carente de música, uma escola renovadora, diferente, mais atualizada na pedagogia e na própria música.”

O resultado da ação e da reflexão foi essa extraordinária escola, que produziu performers e professores, inventores e virtuoses – de grandes nomes dos palcos, como Paulo Almeida, a artistas originalíssimos, como Marco Antonio Guimarães e seu Uakti (“eles faziam os instrumentos na escola, experimentavam, criavam”). “Além de sermos livres e inovadores, nós temos um princípio: nenhum aluno deixa de estudar por não poder pagar”, diz Berenice. A fatia de bolsistas era, e é, sempre farta: “100, 150 bolsistas num universo de 400, 500 alunos”, calcula. 

Esse acolhimento, na solidariedade e na generosidade, é o terceiro fator de potência na fundação. “E, repito, a autonomia embasou nossa capacidade de responder às necessidades da cidade. Por exemplo, em festivais como os de Ouro Preto e Diamantina, éramos os responsáveis pela área de música e fomos vendo as necessidades e as carências de alunos vindos do Brasil todo. Digo isto: lá atrás, os estudantes de música do Brasil mal conheciam Debussy.” 

Aqueles rapazes e moças voltavam para seus locais de origem com “outra cabeça”, analisa Berenice. A semente havia sido plantada. “Eles cobravam de suas escolas e universidades uma abertura, um avanço.” Além da tropa local de professores, houve frequentes convites para compositores irem a Belo Horizonte, e as presenças mudaram panoramas. Berenice dá ênfase à turma da Bahia, a Hans-Joachim Koellreutter (“que formou gerações de educadores”) e a compositores latino-americanos, com destaque ao “grande professor e grande pedagogo argentino Dante Grela, também responsável por uma formação muito sólida de nossos alunos e professores”.

Todas essas iniciativas e muitas outras – a sede com sala de concertos, uma orquestra de câmara – foram, e são ainda, braço essencial de atualização da arte em Minas Gerais. “Colocava-se, assim, um desafio, por exemplo, à própria Federal de Minas Gerais, que antes tinha um curso bastante limitado, mas se ampliou.”

A série Manhãs Musicais – que começou antes mesmo de a Fundação ter sede – já dava palco à música do século XX. O outro lado da autonomia total era a extrema dificuldade de conseguir recursos. “As leis de incentivo começaram a dar um alívio nessa procura insana de recursos”, continua. “Senão, seria impossível nos mantermos em atividade.” Nos anos Bolsonaro, a situação dos financiamentos via lei federal ficou crítica e foi agravada pela pandemia. “Queda enorme no número de alunos, começamos a dar algumas aulas on-line. Mas desde o ano passado a Vale e a Cemig estão proporcionando o recomeço da fundação nesse Curso de Formação Musical e Instrumental. Esse recomeço inclui um curso de formação para alunos a partir de 14 anos em situação vulnerável, usando nossa larga experiência. Esses jovens no ensino médio querem trabalhar, ter profissão e ganhar dinheiro para se profissionalizar desde cedo. Sabemos como isso é importante.”

O projeto patrocinado dá seis horas de aula por semana de formação musical e instrumental, além dos sábados com cultura geral. “E muitos de nossos bolsistas hoje são professores aqui”, reforça Berenice. “Músicos populares, de orquestra, todos formados com bolsa – isto compensa qualquer dureza e dificuldade passada, ver brilharem e passarem adiante seu conhecimento esses jovens que a gente viu começar, muitos sem nenhum apoio ou recurso. O segredo dessa vitalidade tem sido a convivência intensa e livre entre professores, alunos e ex-alunos que participam de todas as invenções e construções”, encerra. 

Berenice Menegale (divulgação)
Berenice Menegale (divulgação)