Vocalmente sólida, musicalmente convincente e plasticamente bela

Montagem de Carmen, de Bizet, recupera o nível de qualidade que se espera de uma produção do Theatro Municipal de São Paulo

Quando a ópera tem o nome da protagonista, a primeira coisa que você quer saber é como foi o desempenho dela. 

A mezzo Lilia Istratii, que cantou o papel em São Paulo, nasceu na Moldávia – e isso está muito longe de ser mera curiosidade biográfica. Afinal, sabe-se que a ópera de Bizet, estreada em Paris, em 1875, foi baseada em uma novela homônima de Prosper Merimée (1803-1870), de 1845. 

Pois bem: embora tenha ambientado sua ação na Andaluzia, Merimée foi um dos primeiros tradutores da literatura russa no idioma francês, tendo vertido, dentre outros, o poema narrativo Os Ciganos (1825), do “pai fundador” Aleksandr Púchkin (1799-1837), cujas situações e diálogos reverberam tanto na obra literária de Merimée, quanto na adaptação operística de Bizet. Como se não bastasse, Púchkin escreveu seu poema logo após visitar um acampamento de ciganos na atual Moldávia – país que, para a Rússia, mobiliza o mesmo tipo de imaginário que a Espanha fazia evocar dentre os franceses do século XIX: um local ao sul, de comida saborosa (seu prato nacional, a mamaliga, pode ser degustado no restaurante paulistano Shoshana Delishop), vinhos excelentes (de uvas como a feteasca neagra e a saperavi) e clima e temperamento quente.

Não faltam temperamento nem physique du rôle a Istratii, que demonstrou uma vocalidade robusta e homogênea em todos os registros, sem que sua entrega e intensidade jamais caíssem de nível ao longo de todas as três horas de récita. Igualmente impressionante foi o Escamillo do barítono sul-africano Bongani J. Kubheka, de consistência invejável.

Na novela de Merimée, Carmen é narrada da perspectiva de Don José, aqui interpretado pelo tenor gaúcho Giovanni Tristacci. Tudo no nome de Tristacci trai a origem italiana, mas ele impressiona por sua afinidade com o repertório francês; não apenas pelo domínio da língua (foi quem articulou falas e canto de maneira mais clara e idiomática), como pela afinidade estilística. Tristacci construiu um sábio arco dramático na evolução de seu personagem, e sua interação com Istratti era pura eletricidade. Foi ainda saudável ver a soprano Marly Montoni, que vem sendo escalada em papéis dramáticos, cantar Micaela em um registro mais lírico e leve – talvez um tipo de parte que lhe deva ser oferecida com maior frequência.

Além do equilíbrio, a Orquestra Sinfônica Municipal mostrou, nos diversos solos, a qualidade técnica que tem tornado prazeroso o acompanhamento de sua temporada de concertos

Lidando com melodias que estão firmemente arraigadas na memória e no coração da plateia, Roberto Minczuk optou por uma leitura sóbria, sem excentricidades nos tempos ou dinâmicas. Além do equilíbrio, a Orquestra Sinfônica Municipal mostrou, nos diversos solos, a qualidade técnica que tem tornado prazeroso o acompanhamento de sua temporada de concertos.

Sabiamente reduzindo os diálogos ao mínimo necessário, Jorge Takla transformou a fábrica de cigarros em que Carmen atua na história original em um ateliê de alta costura – o que pareceu, sobretudo, um pretexto para o desfile dos deslumbrantes figurinos do argentino Pablo Ramírez que, em dobradinha com os cenários de seu compatriota Nicolás Boni (que já assinou muitas cenografias exitosas por aqui), garantiu o encanto visual do espetáculo.

Nessa releitura, a taberna de Lillas Pastia vira um estúdio fotográfico, mas Takla parece não desejar levar a transposição muito longe, nem perder a conexão com a imagem dos personagens tradicionalmente constituída: Escamillo continua sendo toureiro, Don José é mesmo um soldado, suas motivações são as explicitadas no libreto e na partitura, e a encenação está cheia de capas, xales, castanholas, peinetas, os cartazes de tourada que eram moda nos lares paulistanos da década de 1970, e todo tipo de badulaque ibérico. 

A questionar mais seriamente, talvez, a inundação do palco, na cena final do confronto entre Carmen e Don José, por uma série de figurantes: sim, suas roupas são belas, mas essa ação paralela parece roubar algo do foco e do impacto daquele que é, afinal, o acontecimento mais dramático e culminante da ação.

Takla opera ainda um deslocamento temporal, ambientando os fatos na Espanha franquista. Isso não deixa o espetáculo panfletário, mas passa uma mensagem certeira: no final do segundo ato (uma glorificação da liberdade) avista-se, ao fundo, em vermelho, o punho cerrado erguido que simboliza a resistência antifascista. Foi o momento de exorcizar lamentáveis rituais recentemente operados naquela casa que nada têm a ver com sua vocação primordial. O Theatro Municipal de São Paulo deve ser o palco primordial das artes, não o palanque de seus inimigos – como fica reafirmado por esta Carmen.

[Haverá récitas de Carmen ainda nos dias 5, 7, 8, 10 e 11 de maio. Veja mais detalhes no Roteiro Musical.]

 

Ouvinte Crítico

 

Cena de ‘Carmen’, produção do Theatro Municipal de São Paulo (divulgação, Larissa Paz)
Cena de ‘Carmen’, de Bizet, produção do Theatro Municipal de São Paulo (divulgação, Larissa Paz)

 

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Comentários

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Brilhante e adorável crítica Irineu, principalmente em destacar o resgate do Teatro Municipal na sua concepção artística e não pseudo-fascista e falso moralista como tentaram adornar.
Que a arte de Carmem exorcize esse lamentável deslize!

De novo. O colunista não entende nada de opera. Simples assim. Escrever texto para passar pano na produção não é criticar. Ainda abusa e não aceita a minha opinião democraticamente.

Irineu Franco Perpétuo se dá o direito inclusive de ir a programa de televisão julgar músicos e cantores sem nunca ter feito nenhuma coisa e nem outra. Diferente de Collaccioppo ou outro que o valha.
Repito o baixo Righini beirava a afonia. O tenor Tristacci foi horrível, voz infantil, sem peso dramático nenhum. O elenco de apoio esteve bem, sensacional o meio soprano eslavo. Direção cênica ótima, Takla sempre oferece espetáculo lindo. Já a direção musical novamente inventa tempos, custa repetir simplesmente , oq os grandes faziam?? Será que vão apagar esse comentário?

Carlos Gomes,
Querido, queria ver se seu comentário fosse apagado como o meu foi. Quer dizer, ninguém pode nunca discordar? Tem sempre que se dizer amém, ainda que as coisas não sejam como pintam? Simples assim, um formador de opinião que não sabe do que fala ou que tece uma opinião duvidosa, pois foi tendenciosa, como do blog do Ali Hassan, que se diga de passagem, foi visto numa festa na casa do Maestro Minczuk, ora se isso não for crítica comprada oq é? Com duas doses de whisky e alguns canapés!!!
Essa temporada presenciou absurdos artísticos, esse teatro nunca foi tão ultrajado. Como disse, as montagens do Takla de longe salvam por agradar os olhos. E assim lá nave vá....

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Eu não achei ofensivo, foi uma arbitrariedade. Vc poderiam recolocá-lo e deixar para o público avaliar. Quanto a renome e remuneração para tal, e realmente tudo muito duvidoso.
Obrigada

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