Cristian Budu, o poeta do piano

Carisma, domínio técnico, maturidade intelectual, sensibilidade refinada: poucos artistas brasileiros são tão gratificantes de se ouvir ao vivo quanto o pianista Cristian Budu. Se já houve épocas em que uma direção arrogante e diletante fazia a Osesp aceitar Budu quase que a contragosto, na bem-vinda renovação democrática de sua gestão a orquestra agora estende o devido tapete vermelho a este musicista superlativo que, nesta temporada, foi convidado a abrir uma de suas novas séries.

Em 21 e 23 de março, Budu tocou com a Osesp nos horários já habituais: quinta-feira, às 20h30, e sábado, às 16h30. A novidade aconteceu na sexta-feira, dia 22, que inaugurou a série Osesp Duas e Trinta, com uma apresentação não à noite, mas às 14h30, e barateamento dos ingressos, a preço único de R$ 39,60.

Como foi dito no release distribuído à imprensa, e reafirmado no palco da Sala São Paulo pelo diretor executivo da Fundação Osesp, Marcelo Lopes, e pela secretária de Cultura e Economia Criativa de São Paulo, Marília Marton, a ideia é atrair um público diversificado. Se, no primeiro dia, a pontualidade deixou a dever (a orquestra só estava em cena às 14h45), o público parecia um pouco maior do que nas sextas-feiras à noite notoriamente desertas da Praça Júlio Prestes.

Enfim, o concerto era em horário “alternativo”, mas o programa, não. A Osesp repetiu exatamente as peças do horário “normal”. E, ao longo do ano, oferecerá mais oito atrações de respeito, tocando, às 14h30 de sexta-feira, com nomes como os pianistas Tom Borrow e Sergei Babayan, o flautista Emmanuel Pahud e os violinistas Ilya Gringolts e Guido Sant’Anna.

Desta vez, sob regência do britânico Alexander Shelley, a orquestra abriu com mais uma novidade de sua nova gestão: a presença maciça de compositoras femininas. Da paulista Silvia Berg, executou-se Malabares (2009), bela homenagem ao palhaço Piolin, evocando o universo circense com uma escrita atmosférica e controle seguro da paleta orquestral (o programa teve ainda o balé O pássaro de fogo, de Stravinsky). 

Depois desta introdução, Budu subiu ao palco para tocar um dos mais eletrizantes concertos do século XX: o primeiro dentre os cinco do compositor russo Serguei Prokófiev (1891-1953). Prodigioso virtuose do teclado, Prokófiev já tinha duas obras para piano e orquestra estreadas quando chegou a hora de se formar no Conservatório de São Petersburgo, em 1914. Devido ao escândalo causado pela primeira audição de seu segundo concerto para piano, em Pávlovsk, em 1913, ele resolveu apresentar sua obra anterior no gênero, cuja estreia obtivera êxito em Moscou, em 1912.

De qualquer maneira, tratava-se de uma aposta arriscada. Afinal, ele disputava o prêmio de piano do conservatório. A praxe era escolher peças de compositores já consagrados: seus concorrentes optaram por Liszt e Saint-Saëns. Mas Prokófiev – embora tivesse no repertório concertos de Beethoven, Rubinstein, Tchaikóvski e Rachmaninov – interpretou sua própria peça e, apesar da oposição dos membros mais conservadores do júri, como Glazunov, saiu vencedor.

Ao ouvir a obra, entende-se perfeitamente o que pôde chocar a velha geração. Prokófiev afastava-se do mundo onírico dos concertos de Scriabin e Rachmaninov, e cravava uma escrita anti-romântica, próxima do que faria em obras para teclado solo do mesmo período, como a Toccata Op. 11 e as Dez Peças para piano Op. 12.

Embora domine toda a mecânica do instrumento, Cristian Budu é sobretudo um poeta do teclado, e essa qualidade faz-se notar na seção lenta, o Andante assai, em que ele se deleita no diálogo camerístico com os integrantes da orquestra

Em movimento único, a obra está infundida de um sentimento de vigor juvenil captado à perfeição por Budu, cuja agilidade assombra nas passagens mais velozes e virtuosísticas do concerto. Embora domine toda a mecânica do instrumento, Cristian é sobretudo um poeta do teclado, e essa qualidade faz-se notar na seção lenta, o Andante assai, em que ele se deleita no diálogo camerístico com os integrantes da orquestra, criando movimentos de introspecção e lirismo. Mesmo onde maior rapidez era requerida, Budu jamais deixou que a aceleração comprometesse a precisão rítmica ou a nitidez de seu discurso: na difícil cadenza, cada nota fez-se ouvir com clareza cristalina.

O primeiro concerto para piano de Prokófiev é uma obra que transborda alegria de viver, e a convicção interpretativa de Cristian Budu contagiou a Sala São Paulo com o otimismo do jovem compositor russo de 21 anos que se sentia fadado a conquistar o mundo. Trata-se ainda de uma peça um pouco mais breve do que suas companheiras de gênero, o que fez com que o público da sexta-feira não se contentasse com apenas um bis.

E Cristian teve a devida generosidade. Primeiro nos brindou com uma visão saborosíssima e cheia de verve de Apanhei-te, Cavaquinho, de Ernesto Nazareth, com um gestual livre, à beira da improvisação; depois, veio uma colorida Festa no Sertão, de Villa-Lobos. Tomara que a festa do encontro entre Budu e Osesp ainda volte a se repetir incontáveis vezes na Sala São Paulo.

Cristian Budu, Osesp e Alexander Shelley durante concerto na Sala São Paulo [Divulgação/Osesp]
Cristian Budu, Osesp e Alexander Shelley durante concerto na Sala São Paulo [Divulgação/Osesp]

 

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Tive a honra e o privilégio de assistir à apresentação de Budu. A crítica do Irineu, sempre precisa, traduz muito bem a apresentação brilhante e carismática do maravilhoso pianista brasileiro, Cristian Budu.

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