A amálgama de linguagens de Jocy de Oliveira

Com Liquid Voices, compositora reafirma seu pioneirismo com a primeira ópera cinemática

Por Ana Cursino Guariglia

Jocy de Oliveira já declarou que Liquid Voices, recém lançada nas plataformas de streaming, será sua última ópera. Pode ser última, mas é ao mesmo tempo primeira: a obra inaugura um novo gênero, a ópera cinemática, que une o roteiro de cinema à ópera, indo além do comum registro de uma apresentação ao vivo.

A busca pela amálgama de gêneros, ideal artístico de Jocy de Oliveira, faz levantar algumas questões a respeito da permeabilidade das linguagens. Por que há peças de teatro cinematográficas e filmes teatrais? Por que Ennio Morricone foi um notório compositor de trilhas, e não de música “pura”? Estou longe de tentar responder a essas perguntas, que necessitam o espaço de um artigo acadêmico e a experiência e estudo de um decano (ou vários!), mas arrisco apontar algumas hipóteses.  

O texto de Liquid Voices não foge muito dos libretos tradicionais da ópera: um pescador árabe encontra um piano náufrago. A partir de então passa a ouvir vozes, vozes líquidas do espectro de uma antiga viajante. É Mathilda Segalescu, uma personagem ficcional que conta a história verídica e trágica do naufrágio do Struma, derradeiro navio que transportava refugiados judeus da Romênia para a Palestina no final de 1941, durante a Segunda Guerra Mundial. 

A ópera foi encenada no Sesc 24 de maio em 2017, e na época Jocy já tinha a ideia de adaptar a obra para o cinema. Para isso, uma série de transformações: o cenário, em vez de arquitetado no palco, deu-se nas ruínas do Cassino da Urca; as trocas de cena foram editadas em vez de feitas organicamente, como é no caso da ópera ou de uma peça de teatro. E outros enquadramentos, impossíveis de serem apreendidos pelo público em frente a um palco, também foram explorados. 

Ópera Liquid Voices [Divulgação]
Ópera Liquid Voices [Divulgação]

Chegamos aqui ao que penso ser um ponto crucial dessa metamorfose: uma diferença entre o cinema e o teatro é, justamente, o enquadramento. Em Liquid Voices há planos tipicamente cinematográficos: o close nos pés do pescador árabe, ao mesmo tempo espantado e curioso, caminhando com cautela a perscrutar o piano náufrago, guardião do espectro de Mathilda Segalescu; o uso do foco, colocando em evidência uma Segalescu encharcada emitindo gritos sufocados acompanhados pela eletrônica de Jocy; o plano-sequência que acompanha a mesa de jantar macabra de vampiros – e o piano sempre presente, eterna testemunha.s

Além do uso dos diferentes enquadramentos, outra diferença importante entre cinema e teatro, creio, é a montagem. Para Sergei Einsenstein, diretor de Encouraçado Potemkin, a justaposição de imagens, formando uma sequência dialética, seria a chave de produção de sentido própria do cinema, e esse foi seu caminho estético. Jocy de Oliveira, no entanto, não explorou essa possibilidade, optando por encontrar caminhos em enquadramentos que dessem mais ênfase à expressão musical de sua obra. Experimentar mais com a montagem talvez colocasse em primeiro plano a imagem, e não o som – mídia-prima, por assim dizer, de Jocy.

Em grande parte das cenas a compositora inclui músicos que integram o plano junto com Mathilda Segalescu e o pescador árabe. O pequeno grupo, composto por instrumentos de sopro e cordas, forma um personagem só. Já em outra cena, uma flauta solo entra dialogando diretamente com o texto – o flautista movendo-se pelo cenário junto com o pescador árabe, replicando, perguntando, instigando suas elucubrações. A música eletrônica também está presente em toda a ópera, abordando sons predominantemente aquáticos e outros graves, numa dialética concreta que remete à obra anterior de Jocy, Noturno de um piano, de 2006. 

Assim como Eiseinstein buscou na montagem a transcendência do cinema, Jocy de Oliveira buscou (e busca) na junção das linguagens uma transcendência para a música nova. Em uma contemporaneidade que ainda pressupõe a música como totalmente independente, ainda que desprovida de uma linguagem comum, Jocy, em seu pioneirismo inquieto, enxerga a expressão máxima de sua música alicerçada em várias artes. E por que não? Temos pela primeira vez uma ópera contemporânea brasileira que, não fosse esta terrível pandemia, teria estreado no cinema. Nessa amálgama entre texto, cena e harmonia, a música de invenção permanece, resiste, encontra sentido, transcende novamente e caminha com mais forças em direção a seu futuro. Será certa a resposta de Jocy para a música contemporânea?

 

Ana Cursino Guariglia é jornalista e pianista. Este texto foi produzido durante o workshop Jornalismo cultural e crítica de arte realizado pelo Sesc, sob orientação do professor e jornalista João Luiz Sampaio. 

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