Um meio musical em busca da diversidade

Para professora Sonia Ray, pouca presença negra nas orquestras precisa ser debatida e questionada

Por Larissa Mariano

No dia 03 de julho de 2020, diante do novo cenário pandêmico no qual estamos vivendo e o estouro das “lives” (transmissões ao vivo de shows, debates, palestras etc., onde o público pode interagir livremente com o emissor), a OSUSP (Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo) realizou um debate ao vivo para discutir o tema “Questão racial em orquestras” com professores e músicos especializados na área. 

O tema tem importância central no mundo musical. Ao observarmos a composição de membros dos principais e grandes conjuntos nacionais e internacionais, é perceptível um quadro pouco diverso: homens, em sua maioria brancos. 

Nas últimas décadas, a representatividade feminina começou a crescer no âmbito da música clássica, mesmo que ainda de maneira gradual. Porém, quando falamos de questões raciais, o processo é ainda mais delicado e lento.

Gustavo Carvalho, 18 anos, é músico e toca violoncelo desde os 6 – e também um pouco de órgão, viola, violino e violão, devido a sua experiência em orquestras com fins religiosos. “Particularmente sinto uma frustração a respeito da minha educação musical no aspecto da representatividade negra ali dentro”, ele diz. “Descobri com 10 anos que as músicas que sempre gostei de ouvir e tocar, foram feitas por compositores brancos, da camada privilegiada da Inglaterra e Alemanha. É claro que nesse tempo eu não tinha conhecimento o suficiente para analisar o episódio, nenhuma criança teria, mas hoje penso que se me fossem apresentados músicos que se parecessem comigo, e digo nas características físicas e socioeconômicas, talvez eu tivesse me fixado mais na área profissionalmente. Meu leque musical seria muito mais rico.”

Sonia Ray [Divulgação]
Sonia Ray [Divulgação]

Sonia Ray, musicista e professora de contrabaixo na Universidade Federal de Goiás, foi uma das participantes do debate promovido pela OSUSP. “Precisa haver um debate. Precisa haver uma consulta aos músicos, estudantes negros que atuam em orquestras brasileiras para saber do que eles se ressentem, do que eles acham que seja necessário. Claro, é preciso também uma consulta ampla com os educadores, professores, para se saber como as políticas públicas poderiam efetivamente contribuir”, ela explica. “Certamente, deveria haver uma política que atingisse essa população em nível estrutural, na formação musical, na formação educacional, social e cultural como um todo. As demandas, uma vez localizadas, necessitam de orientações de comportamento e socioeconômicas, para que todas as ramificações da sociedade possam entender a problemática, com a atuação conjunta de artistas, profissionais da música, políticos e estudantes. Fundos são necessários, pois são essenciais para a criação de algo efetivo”, relata Sonia acerca de como as políticas públicas podem contribuir para o enfrentamento do problema no Brasil.

Algo muito comum nos Estados Unidos, e que também ocorre no Brasil, é a utilização de biombos durante os testes e audições para a seleção de músicos nas orquestras. O biombo é como um acobertamento de madeira, que funciona de modo com que o candidato não é visto pelos avaliadores, impedindo então qualquer pré-julgamento, fazendo com que tudo passível de ser julgado seja exatamente aquilo que se deve: apenas a música. Entretanto, o biombo é uma solução de curto prazo, e não contempla as questões estruturais que o fazem ser necessário. 

Sonia Ray toca também na questão do pedantismo cultural, termo que se refere a quando determinado indivíduo ou parcela da população utiliza meios culturais (preferências musicais, acadêmicas, estéticas etc.) como meio de superioridade intelectual, é um fator que também cumpre um grande papel na problemática abordada dentro das orquestras. A música erudita muitas vezes é vista sob o estereótipo de algo “difícil, chique, caro”, apreciada por apenas um seleto grupo. Esse mesmo grupo, a elite, também se beneficia do estereótipo por meio do pedantismo cultural. Como então discutir a questão racial dentro de um universo já complexamente dividido? 

“No tocante à música de orquestra, o pedantismo com certeza está atrelado com questões sociais e raciais, como algo bem definido pelo racismo estrutural. Todas as estruturas da sociedade contribuem para que exista uma hierarquia social, cultural. No mundo orquestral existem reflexos claros disso, basta observar a quantidade mínima de músicos negros que conseguem se afirmar profissionalmente nesse meio”, afirma Ray.

 Problemas estruturais são o cerne e a causa da baixa representatividade negra no mundo das orquestras. A música erudita cresceu no Brasil vinda em grande parte por coros e composições locais interioranas, e atualmente, deixa muito de sua origem pelo caminho. 

“Tempo para mim é a resposta. Quem praticava leitura, aqueles que se dedicavam ao estudo e aqueles que se dedicavam a arte tinham tempo, e como diz o ditado “tempo é dinheiro”. É uma questão de diferença nítida de desigualdade social, e por esse motivo, na minha opinião, a representatividade de pretos na música erudita é tão pequena”, afirma Gustavo.

Muitos projetos sociais, principalmente em São Paulo, também estão sendo realizados há muitos anos em prol do esforço para a mudança deste contexto, levando a música clássica para áreas e populações diversas da cidade. Sonia conta que foi um desses projetos que a inseriu no contexto orquestral. 

“A música não é um privilégio, nem a clássica, nem nenhuma outra. A profissionalização em orquestras, sim, atualmente no Brasil se trata de um privilégio. O contato com essa música, não. Minha mãe, que cursou apenas o curso primário, foi quem me trouxe a música. Ela ouvia no rádio um programa de clássicos, e eu ouvia com ela. Esse estereotípico de que a música erudita é algo restrito, seleto, é fonte do preconceito estrutural, o mesmo que afastou aqueles que não tinham acesso a educação do contato com todo tipo de arte e entretenimento. O acesso, o reconhecimento, a representatividade deste tipo de música na vida cotidiana, sim, é privilégio. Mas a música em si, não”, diz a professora. 

Sabemos que a temática é algo que precisa ser continuamente discutida, por músicos, estudantes e por toda a sociedade, pois trata-se de um reflexo de heranças sociais e culturais do nosso país. A música, por si só, tem o poder de sensibilizar todos que a tocam e a ouvem. Porém, se ignorado pontos cruciais do quadro social de uma nação, ela também pode se tornar tudo aquilo que não é: um cenário de exclusão.

“Mas a verdade é que não existe coisa melhor do que uma roda de música popular, clássica, erudita, qual seja, em um domingo a tarde com os companheiros de sopro, arco e palheta.” - Conclui Gustavo.  

 

Larissa Mariano, 19, é estudante de jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. Este texto foi produzido durante o workshop de Jornalismo cultural e crítica de arte realizado pelo Sesc SP, sob orientação do professor e jornalista João Luiz Sampaio. 

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