Elegância, poesia, refinamento: morre, aos 92 anos, o maestro Bernard Haitink

por João Luiz Sampaio 22/10/2021

A foto mostra o maestro Bernard Haitink deixando o palco após seu último concerto em Londres, em 2019. De costas, ele segue para a coxia, o corpo ereto, a bengala na mão. Há uma tranquilidade na imagem, enorme poesia, elegância. E todos os adjetivos bem poderiam servir para descrever o modo como ele criou interpretações inesquecíveis de um repertório que ia de Mozart à música francesa do século XX, passando pelos principais compositores do classicismo e do romantismo.

Haitink morreu ontem, dia 21, aos 92 anos em sua casa em Londres. O comunicado foi feito pela sua agência. E logo começaram a surgir depoimentos de artistas que com ele colaboraram, sempre com lembranças especiais. O maestro Neil Thomson foi um deles. “O maior dos maestros e o mais humilde dos homens: nunca esquecerei sua delicadeza e sabedoria”, escreveu o diretor da Filarmônica de Goiás e maestro convidado da Osesp. “Ele tinha a habilidade de chegar ao coração de qualquer peça que regia, de modo direto e com incrível refinamento”.

Haitink teve uma carreira grandiosa. Dirigiu a Orquestra do Concertgebouw de Amsterdã, a Royal Opera House Covent Garden de Londres, a Filarmônica de Londres, o Festival de Glyndebourne, a Staatskapelle Dresden. Em 2006, assumiu a Sinfônica de Chicago mas recusou um contrato que fosse além de um punhado de anos: na época, disse precisar reconhecer que já não tinha mais idade para desenvolver um trabalho como titular de uma orquestra e se dispôs a ficar no cargo apenas até que o grupo encontrasse um nome.

Esse tipo de “recusa” ao estrelato não foi único em sua trajetória. Quando, nos anos 1970, a Philips quis contratá-lo para realizar uma integral das sinfonias de Mahler, ele se recusou. Disse não ter conhecimento necessário de todas elas. Perante a insistência do selo, achou um meio-termo. Gravaria as sinfonias, mas uma por ano. “Era uma loucura sugerir algo assim, mas eles por algum motivo aceitaram”, contou em uma entrevista.

O motivo não é assim tão misterioso. Basta ouvir as sinfonias que ele interpretou já nos anos 1960, em gravações ao vivo feita por rádios e décadas depois lançadas (algumas delas, sem conhecimento do maestro). A clareza com que a monumentalidade conflituosa de Mahler já ganhava forma sob suas mãos era impressionante. Quase a antítese das interpretações de Leonard Bernstein, que começavam a surgir na mesma época. E é preciso reconhecer que Haitink foi tão importante para o revival do compositor austríaco quanto seu colega norte-americano.

A relação com Mahler se desenvolveu com o tempo. Depois do ciclo gravado para a Philips, em Amsterdã, ele gravou as sinfonias com outras orquestras. No começo deste ano, a Filarmônica de Berlim lançou um registro ao vivo da Nona. É difícil de imaginar, no Adagio final, a construção de dinâmicas com que a música vai ganhando forma depois da introdução dolorida e angustiante das cordas. 

Não por acaso, Mahler está muito associado à sua trajetória. Na mesma intensidade quanto Anton Bruckner. Suas catedrais sonoras, como se convencionou chamar suas sinfonias, não eram, com Haitink, mastodontes: o arco mais amplo se fazia de pequenos gestos, e por meio da atenção ao detalhe. E com uma característica marcante em todas as suas gravações: o equilíbrio entre os naipes, que deixava suas orquestras nuas, transparentes, tanto em Mozart quanto na mais carregada música pós-romântica.

No início da carreira, Haitink gravou integrais sinfônicas de autores como Brahms e Beethoven. E as revisitou há uma década com a Sinfônica de Londres, em registros ao vivo nos quais as obras ganhavam ainda mais dimensões. Em seu Beethoven, a forma parecia guiar a compreensão do conteúdo. E o conteúdo... a marcha fúnebre da Eroica, o início da Quinta, a construção da tempestade na Pastoral, o equilíbrio da Oitava. Era como se não houvesse algo que Haitink, com sua técnica, não pudesse extrair de uma orquestra.

Na ópera, o estilo sóbrio era capaz de encontrar um sentido renovado de dramaticidade. Seu Anel do Nibelungo costuma ser relegado a segundo plano na lista de grandes gravações da tetralogia. É certo que a lista é enorme. Mas o equilíbrio na escolha do elenco, o espaço para a voz e o cuidado em manter sempre a narrativa musical entre a urgência e a clareza fazem de passagens como o primeiro ato da Valquíria, o dueto de amor de Siegfried e o final do Crepúsculo alguns dos momentos mais especiais e representativos de sua trajetória artística. 

Em 2010, após uma inesquecível Sinfonia nº 5 de Bruckner com a Filarmônica de Viena, tive a chance de entrevistar Haitink por cerca de uma hora no Festival de Salzburg. Um intérprete, ele me disse brincando, é uma pessoa de segunda categoria, cuja função é dar voz aos compositores. Nós, jornalistas, então, somos, com muito esforço e sorte, de terceira ou de quarta. Mas vivemos justamente por momentos como esse, pela chance de entrevistar artistas como Haitink.

Naquela conversa, ele falou da sua relação com Bruckner e de como não compartilhava a fé do compositor. “Mas é meu dever compreender essa crença tão presente em sua vida, ainda que, para mim, ela não seja uma verdade. Se não me interesso pelo milagre que é a criação de uma obra, então devo parar de reger.” Sobre Mahler, explicou os motivos pelos quais se recusou a viajar o mundo, nos 150 anos do nascimento do compositor, fazendo um ciclo das sinfonias com diferentes orquestras, em concertos que seriam gravados.

“De uma hora para outra os maestros começaram a procurar em Mahler lógicas internas que sua música não têm. Talvez seja uma questão de época, não sei. Talvez haja muito barulho em torno da sua música. E minha vontade é me recolher, ficar quieto um pouco no meu canto.”

Quieto, na verdade, ele não ficou. Quando a Sinfônica de Chicago lhe sugeriu uma integral de Mahler para marcar sua despedida do grupo, “recusou educadamente” e pediu para reger Beethoven. “Mahler é um universo rico, mas Beethoven é o ser humano nu, sua música é fantástica na estrutura, na forma e na emoção.” 

Na conversa, ele relembrou ainda as vezes em que foi a Salzburg como estudante, para assistir ao festival. E de uma tarde que o marcou em especial: após um concerto de Wilhelm Furtwängler, passou horas caminhando à beira do Rio Salzach, tentando compreender que tipo de magia se dava na relação de um maestro com uma orquestra. E que resultava em resultados musicais tão impressionantes.

A julgar por uma entrevista que deu em 2011 ao jornal The Guardian, não havia ainda encontrado uma resposta. “Tenho feito isso a tanto tempo, há 50 anos. E, sabe, é uma profissão e não é uma profissão. Às vezes é algo obscuro. O que é um grande maestro? O que é isso de que tanto falam, carisma? Ainda me pergunto, depois de tanto tempo”, afirmou. Sorte nossa que, no palco, há décadas, ele vinha nos dando respostas a essas perguntas.

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Bernard Haitink [Divulgação/Askonas Holt]
Bernard Haitink [Divulgação/Askonas Holt]

 

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