Retrospectiva 2023: Mere Oliveira, mezzo soprano, gestora e ativista cultural antirracista
“A realidade experienciada do racismo, os encontros subjetivos, as experiências, as lutas, o conhecimento, a compreensão e os sentimentos dos negros no que diz respeito ao racismo, assim como as cicatrizes psíquicas que o racismo nos causa, têm sido amplamente negligenciados. Tais fatores só se tornam visíveis nas esferas públicas e acadêmicas quando a normalidade da cultura nacional branca é subitamente perturbada, quando nossas experiências com o racismo colocam em risco o conforto da sociedade branca. Nesse momento, nós e nossa realidade com o racismo nos tornamos visíveis, faladas/os e até mesmo escritas/os, não porque talvez possamos estar em perigo ou em risco, ou precisar de proteção legal, mas sim porque tal realidade desconfortável perturba a estável imunidade branca.”
Essa fala da filósofa e pensadora negra portuguesa Grada Kilomba nos provoca a refletir e agir em prol de uma mudança real, primeiro em nós mesmos, depois no mundo que nos rodeia. Em 2023 a produção cultural brasileira viu sair de si o véu do obscurantismo, do reacionarismo e do fascismo com o retorno do Minc e da reorganização das políticas públicas de cultura, trazendo consigo o arcabouço da evolução social pela qual sempre lutamos, e que estava sendo pisoteada e lançada nos porões da sociedade por uma política nefasta.
A luta antirracista na arte, assim como na vida, seguiu a passos firmes, mesmo que em alguns cantos do país o fascismo a ameaçasse, e multiplicou olhares, palavras e em alguns casos ações – sim, essas são as mais difíceis de se colher. Há produções maravilhosas, feitas por companhias de ópera e de música de concerto independentes pelo país afora, tal qual o NOP - Núcleo de Ópera da Bahia realiza no Brasil e fora dele, inclusive com a exibição da Ópera dos terreiros na France TV, no marco das Olimpíadas Culturais em junho de 2024 na França. E não parou por aí, estão a pleno vapor na produção de Jelin, de Aldo Brizzi.
O Conservatório de Tatuí realizou a segunda edição do Concurso Joaquina Lapinha, para cantores líricos pretos, pardos e indígenas, obtendo um resultado artístico incrível e provocando teatros, produtores e maestros a promoverem diversidade e antirracismo em suas produções. Coletivos como o Ubuntu Brasileiro seguem trabalhando pela causa, e em 2024 terão uma nova produção de ópera com elenco negro em Taubaté, por conta de um projeto contemplado em um dos editais da Funarte.
Ações afirmativas, como concursos, podem acontecer em qualquer parte do país e além de premiar podem oferecer uma agenda profissional aos premiados – isso promove realmente o artista a um novo patamar profissional, proporcionando visibilidade e trabalho concretos. Ver cada vez mais cantores e cantoras negros e indígenas brasileiros nos palcos brasileiros, nas audições, engajados em produzir, propor projetos e soluções, participando de discussões e produzindo conhecimento a partir de seus lugares, multiplicando a produção independente pelo Brasil afora é um alívio. No entanto, nos espaços mais destacados, geográfica e financeiramente, ainda há uma discrepância absurda entre o discurso que quer parecer antirracista, diverso e equitativo, para as ações e realizações de temporadas.
Abrir audições e ouvir cantores líricos pretos, pardos e indígenas somente proforma, para depois eleger os mesmos solistas brancos e privilegiados de sempre, não te torna um antirracista, mas sim um hipócrita dissimulado. Ao chamar cantores líricos pretos, pardos e indígenas, esteja disposto e preparado para contemplá-los com os trabalhos. Oportunizar trabalho é crescimento, é promoção desses artistas; é urgente privilegiar essa população de artistas que precisa da oportunidade para mostrar sua potência. Nossos sonhos são o olhar que se projeta para fora, mas somente olhando para dentro é que despertamos nossa consciência – tanto a nosso respeito, quanto a respeito da sociedade em que vivemos. Que 2024 seja um ano de realização dos sonhos de quem olhou para dentro de si e do seu meio, e por isso, mudou o seu mundo.
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