Na história de Fidelio, de Beethoven, Leonore resolve se travestir de homem e conseguir um trabalho na prisão em que, ela acredita, está sendo mantido preso o seu marido Florestan. Ela se apresenta com o nome de Fidelio, conquista a confiança do carcereiro Rocco – e o amor de sua filha Marcelina. Faz uso da aproximação com a família e convence Rocco a levá-la até o calabouço em que está um preso particularmente perigoso, a quem o governador da prisão, Pizarro, pretende matar. No segundo ato, a confirmação: tal preso é mesmo Florestan e, quando a morte do amante parece iminente, ela revela sua identidade para impedir o desfecho. A chegada do ministro Don Fernando é anunciada e, em nome do rei, ele se coloca contra o bárbaro Pizarro. Os prisioneiros são libertados. Florestan e Leonore estão juntos mais uma vez.
À época da composição da ópera, na primeira década do século XIX, os ideais iluministas rondavam a mente de Beethoven. A razão, a justiça, a luta pela verdade, a comunhão entre os homens; uma sociedade que se constrói a partir da reação à tirania, perante a qual se impõe a liberdade – são todos temas que perpassam a história. Mas do contexto da trama sabemos realmente muito pouco. Em seu ensaio sobre a obra, publicado em Music at the Limits, Edward W. Said chama atenção ao fato de que não conhecemos de que crime Florestan é acusado; em sua ária, no início do segundo ato, ele diz ter sido punido por dizer a verdade, mas Beethoven não nos diz que verdade é essa, apenas que ela está relacionada a Pizarro. E o que podemos subentender, pelo contexto da criação da obra, é que possui alguma conotação política.
Na montagem estreada na semana passada no Theatro São Pedro de São Paulo, o diretor William Pereira, apoiado no dramaturgismo de Ligiana Costa, preenche esses espaços vazios. Leonore e Florestan são jornalistas em meio a uma investigação sobre a prisão ilegal de colegas da imprensa, pela qual é responsável, eles descobrem, Pizarro. Florestan é preso. E Leonore, após enviar suas descobertas ao magistrado Fernando, resolve partir em busca de Florestan. A escolha é interessante, em especial por dar à personagem feminina uma motivação que vá além da felicidade conjugal. E se justifica. Fidelio é acima de tudo uma ópera de ideias e, por isso mesmo, atemporal.
Mas, como toda ação se passa já na prisão, é preciso oferecer essas informações prévias ao público, o que é feito por dois vídeos que acompanham as introduções orquestrais do primeiro e do segundo atos. E aí nem mesmo a qualidade da execução da orquestra comandada por Claudio Cruz, arisca e violenta nas cordas, intensa nas madeiras, sombria na percussão, impede que a atenção se dilua e tire a força da música na construção de climas, em especial na introdução do segundo ato e da ária de Florestan, uma das grandes passagens da carreira de Beethoven (que ganhou do tenor Eric Herrero, de material vocal tão rico, uma interpretação às vezes pouco matizada, em especial quando contrastada com a intensidade oferecida pela soprano Eiko Senda como Leonore/Fidelio). Ainda assim, o espetáculo é fluente, pelo senso teatral da leitura de Cruz e seus músicos (ao coro, infelizmente, restaram desencontros incômodos) e pela direção de atores.
Quando colocado inteiramente em um só ambiente, o da sala de controle da prisão, o primeiro ato pode se tornar um problema. Mas o cenário de Georgia Massetani faz sua mágica. Austero e simples, deixa espaço para que Pereira trabalhe a movimentação dos atores em cena e coloque neles o foco da ação, que não se torna em momento algum monótona. Momentos como o quarteto Mir ist so wunderbar ou a ária de Fidelio (tornada ainda mais impactante pelo crescendo dramático trabalhado por Senda) são testemunhos disso. E não os únicos, com destaque ainda para o lirismo quase pueril da Marcelina de Lina Mendes e do Jaquino de Mar de Oliveira.
![Lina Mendes, Gustavo Lassen e Eiko Senda em cena de 'Fidelio' [Divulgação/Iris Zanetti]](/sites/default/files/inline-images/w-fidelio_0.jpg)
Há muita discussão em torno do modo como Beethoven constrói seus personagens. O maestro John Eliot Gardiner, que trabalhou com as diferentes versões da ópera, diz que, ao não explorar a fundo a história dos personagens, Beethoven opta por privilegiar as ideias perante a complexidade humana daqueles que retrata no palco. Já Bernard Shaw, ainda que reconheça as falhas na dramaturgia, insiste no fato de que, mesmo tratando acima de tudo de ideias e conceitos filosóficos, Beethoven foi capaz de fazê-lo sem perder de vista a profunda complexidade da condição humana. Mas o que Shaw oferece como oposição talvez não precise sê-lo. E se for justamente nos espaços vazios que essa condição se coloca de maneira mais flagrante? Em outras palavras, não estaria naquilo que não é dito a riqueza a ser explorada na partitura de Beethoven?
Não sei a resposta. Mas, ao mesmo tempo em que a montagem nos oferece elementos para compreender de forma mais bem marcada as motivações de Leonore e Florestan, os dois grandes personagens da noite de estreia foram Pizarro e Rocco. Do primeiro, o barítono Licio Bruno ofereceu um retrato feito de urgência quase maníaca em seu desejo de morte. O Rocco de Gustavo Lassen, por sua vez, foi desconcertante pela forma como mistura o lirismo, o fraseado, a elegância do canto com as palavras que falam de uma moralidade que se recusa a matar, mas aceita cavar a vala onde o corpo assassinado será jogado.
Volto rapidamente a Said e a seu comentário sobre o final da ópera. “É importante reconhecer que Fidelio lida com incertezas e incapacidades, se deparando com problemas e soluções que não consegue oferecer totalmente. Tirania e benevolência operam mais ou menos como equivalentes, podem ser substituídas uma pela outra pelo milagre da chegada repentina: a polícia de Pizarro e os trompetes que anunciam a chegada de Fernando são intercambiáveis. A explicação de Florestan é de que o Estado agiu contra ele, mas nunca sabemos que tipo de Estado é esse. Quem são os demais prisioneiros? Todos almejam liberdade e luz, mas estamos certos de que são todos movidos por princípio (como Florestan) ou amor (como Leonore)? O que o compositor faz para nos garantir que a história da tirania não irá se repetir?”, escreve.
É no desfecho de Fidelio, com sua exaltação da liberdade e da verdade, que a ópera parece particularmente vaga e, sem um lastro que o elabore, quase inocente. Talvez por isso a crueldade de Pizarro e a banalidade da moral de Rocco calem mais fundo à medida em que saímos do teatro e lembramos do tempo em que vivemos.
Shaw sabia das coisas.
A ópera 'Fidelio' fica em cartaz até o dia 27 de abril no Theatro São Pedro; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO
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