Armas, violência, intolerância: um 'Romeu e Julieta' para 2022

por João Luiz Sampaio 25/04/2022

O Brasil de hoje caminha de cabeça para baixo. Fatos não se impõem sobre mentiras descaradas. As Forças Armadas afirmam independência de um governo do qual fazem parte abertamente. O Congresso Nacional defende as instituições enquanto se omitem para garantir o dinheirinho nada secreto. O presidente da República defende a vida advogando pela morte. Direitos fundamentais já não são mais direitos – e a violência contra o diferente é agora política de estado. Notas de repúdio, que já pouco significavam, nem são mais escritas. Sobra o vazio, onde se forja a destruição. Um silêncio que brinca com o caos.

Boa parte dos analistas políticos, é verdade, dirá que há método no caos. Mas, seja como for, no momento em que essa realidade ganha o palco, algumas escolhas são feitas e certos aspectos são colocados em perspectiva. É o que acontece na produção de Os Capuletos e os Montéquios, ópera de Bellini encenada por Antônio Araújo no Theatro São Pedro de São Paulo.

A plateia é dividida em duas alas, separadas por uma cerca eletrificada. Capuletos de um lado, Montéquios de outro, certo? Não necessariamente. Afinal, se representam lados opostos – na vida real ou na ficção –, unem-se também no crime.

Nesse sentido, não há motivo para tomar de forma literal a separação. A caracterização pode antes ser lida como um pano de fundo a revelar um país no qual impera a violência, irradiada a uma sociedade que valoriza a arma antes do diálogo. E que permite e alimenta-se na polarização: prostitutas e mulheres “de bem”, vestidas de noivas; indígenas e caubóis; fundamentalistas religiosos e homens trans.

Cena de 'Os Capuletos e os Montéquios' [Divulgação/Heloisa Bortz]
Cena de 'Os Capuletos e os Montéquios' [Divulgação/Heloisa Bortz]

Poderia-se argumentar, em alguns casos, sobre nuances – a noiva, por exemplo, não é também vítima de uma violência patriarcal (como, aliás, acontece com Julieta)? A oposição então poderia também ser vista como um jogo de espelhos fragmentado, em que a dificuldade em aceitar o outro, e enxergar-se nele, é mais forte do que qualquer suposta ideia ou visão de mundo. Mas a montagem de Araújo é também tomada de posição: e nesse sentido é bem sucedida a introdução de um coro feminino silencioso, a nos lembrar o tempo todo que algumas coisas não podem ser normalizadas.

Em entrevistas, Araújo explica o caráter coletivo ou social que dá a sua leitura. Bellini e seu libretista Felice Romani, ele lembra, optaram por batizar a ópera não de Romeu e Julieta mas, sim, a partir dos sobrenomes de suas famílias – e isso permite ao diretor essa exploração da violência e da morte como bases de um extrato social que ruma para a tragédia.

Mas a ideia se justifica também pelo fato de que Os Capuletos e os Montéquios é, muito mais do que uma história de amor, uma ópera sobre a morte. Fui olhar no libreto. A palavra morte aparece tantas vezes quanto a palavra amor; e é seguida de dezenas de “túmulo”, “fatal” e assim por diante.

Claro, não se trata apenas de quantidade – amor e morte, afinal, andam juntos em boa parte do repertório do século XIX. Mas há escolhas significativas. A ópera não se baseia na peça de Shakespeare, é verdade, mas a comparação talvez ilumine ao menos um aspecto. Se, no dramaturgo inglês, a morte (de Tebaldo) precipita a tragédia do casal de amantes, em Bellini a morte está dada desde o início como realidade incontornável.

Isso arremata a proposta da produção, justificando o retrato de uma sociedade, como a brasileira, saturada de morte. Mas permite ao diretor também algumas soluções interessantes, em que ele pode articular a chave coletiva e o aspecto mais intimista da história, como na cena em que Julieta, no início do segundo ato, reflete sobre sua condição caminhando sobre os corpos de milicianos e traficantes; na linguagem corporal e cênica que propõe quando o duelo entre Tebaldo e Romeu é interrompido pela chegada da notícia da morte da jovem; ou na interação entre as duas amantes na cena final da ópera.

Conhecido por seu trabalho com o Teatro da Vertigem, Araújo já esteve à frente de espetáculos como O Livro de Jó ou BR3, que tinham a cidade como cenário - no caso, o Hospital Humberto Primo e o Rio Tietê, respectivamente. De volta ao interior de um teatro, talvez não seja exagero dizer que ele busca, na utilização do espaço, a recusa do confinamento da ação. Não apenas pelo uso da plateia ou das portas laterais, que se abrem para a rua – aqui, por sinal, é preciso ressaltar o uso consciencioso dos recursos, que se tornam mais refinados a partir do segundo ato. Mas porque propõe a ópera como espaço de reflexão sobre a rua, entendida como espaço em que as relações sociais se constroem, e o faz com potência e articulação inteligente entre os diferentes elementos da cena.

Melodias longas e audaciosas

Vincenzo Bellini, com Gaetano Donizetti e Gioacchino Rossini, compõe a trinca que a história da ópera associou mais diretamente ao estilo do bel canto, criada pelo menos um século antes. A definição de dicionário explica que se trata de uma escola na qual a voz é fonte do drama, precisando ser, ao mesmo tempo, elegante, uniforme, ágil, clara na enunciação das palavras, precisa na construção de coloraturas.

Os três autores, no entanto, eram diferentes entre si. E todos falaram sobre suas visões a respeito da relação entre texto e música.

Para Rossini, à orquestra caberia criar uma atmosfera capaz de preencher o espaço no qual as personagens desempenham seus papeis – o compositor, portanto, não deveria tentar imitar o que as palavras dizem mas, sim, tornar mente e coração do públicos suscetíveis às situações da história.

Donizetti entendia a conexão entre texto e música a partir de uma visão dramática do mundo. Dizia que sem o amor, somos sujeitos frios. E que o amor só se faz verdade no palco quando retratado em sua violência – uma violência (ou intensidade) que está presente na construção das linhas vocais muito mais do que no acompanhamento orquestral.

Bellini, por sua vez, associa melodia e texto de maneira a combinar a música à psicologia do libreto. Isso quem diz é Richard Wagner, e Giuseppe Verdi iria adiante ao afirmar que ninguém foi capaz de criar melodias tão longas e audaciosas. Juntando os dois, Julian Budden vai dizer que, na obra do compositor, a música nunca detalha os versos do poeta, ela os dissolve em melodia.

Para que assim seja, é preciso atenção aos detalhes, construídos tanto de silêncios (leves e sutis pausas que Bellini usa mesmo em meio a algumas linhas vocais) quanto de arroubos dramáticos que, no entanto, não se pretendem nunca óbvios ou exagerados.

Há nisso tudo uma delicadeza, ou talvez seja melhor usar o termo dolcezza. E, se de um lado a leitura do maestro Alessandro Sangiorgi abre espaço para que os cantores desenvolvam os desafios da escrita vocal de Bellini, de outro a opção por uma sonoridade brusca, quase metálica em algumas passagens, faz com que alguma sutileza se perca, ainda que, em alguns momentos, como a cena final, orquestra e solistas consigam encontrar-se de modo tocante. A questão, no entanto, é estilística e não técnica, com um bom desempenho tanto da Orquestra do Theatro São Pedro quanto do coro arregimentado para o espetáculo.

Na récita de domingo, dia 24, a soprano Carla Cottini, ainda que pese a beleza do timbre, teve problemas em especial nas regiões mais agudas da voz, comprometendo algumas passagens importantes da personagem, como no recitativo do início do segundo ato e no dueto com o Lourenço sólido e eficiente de Douglas Hahn. Da mesma forma, o baixo Anderson Barbosa parece ter precisado enfrentar dificuldades vocais que não costumam marcar suas interpretações.

Assim, do ponto de vista vocal, a récita foi do tenor Aníbal Mancini como Tebaldo, com atenção especial aos fraseados, construídos de maneira muito musical. E, principalmente, da mezzo soprano Denise de Freitas. A caracterização de Romeu entra para a sua galeria de grandes interpretações, pela maneira como explora os múltiplos coloridos da voz e nunca é superficial, dando gravidade ao papel na medida correta de sua multiplicidade, seja em momentos de extroversão, seja nas tocantes passagens mais líricas.

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Cena de 'Os Capuletos e os Montéquios' [Divulgação/Heloisa Bortz]
Cena de 'Os Capuletos e os Montéquios' [Divulgação/Heloisa Bortz]

 

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Comentários

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Embora grande admirador de João Luiz Sampaio, tendo frequentado vários de seus cursos, não há como não lamentar seu comentário. A não ser que ele esclareça que, nos parágrafos iniciais, ele se referia a outro país que não o Brasil. Para me limitar a apenas um aspecto, gostaria que fosse explicado quais são dos "direitos fundamentais já não são mais direitos"! Quanto à ópera, eu sou contra a deturpação da ideia original do compositor. Ele a concebeu e merece respeito. Em suma, não há como curtir, seja o espetáculo ou a crítica.

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Sem dúvida, João Luiz Sampaio referiu-se ao Brasil, onde muitos de nossos direitos têm sido agredidos por um governo incompetente e sem noção do valor da cultura, nosso direito por ele mais agredido. Isto, contudo, não justifica uma montagem equivocada, feia e que explicitou o óbvio. A cerca que separou a plateia em duas só serviu para prejudicar a visão do palco. Transformar Romeu literalmente numa mulher foi o maior dos equívocos. Para que serviu isso? O contexto não dava lugar para isso. Não sou contra montagens modernas e ousadas, desde que sejam inteligentes e façam sentido. Esta não foi nenhuma das duas coisas. Foi também feia, pesada e agressiva, destoando completamente da etérea música de Bellini.

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Um comentário tão fora de contexto, quanto a ideia de um Romeu lesbicão. No teatro, eu saí no intervalo, aqui só me resta dizer ao Sr João, que suas opiniões políticas deveriam ser levadas para outros veículos. Aliás, acho que essa deveria ser uma preocupação dos administradores desta revista. Lamentarei muito se a Revista Concerto partir para linha de comentários.

Prezados leitores do Site CONCERTO, muito obrigado pelas mensagens. A ideia é esta, a de que os leitores se manifestem. Agradeço pelas opiniões de cada um de vocês.

Nilton, apenas gostaria de registrar que João Luiz Sampaio não está defendendo posições políticas, mas expressando uma opinião relacionada com a ópera que ele está resenhando. Praticamos um jornalismo cultural aberto, democrático e plural, em que cada um de nossos colaboradores pode se expressar com absoluta liberdade. E em diversas ocasiões já publicamos críticas de um mesmo espetáculo com opiniões diferentes.

Mais uma vez, obrigado a todos! Com cordiais saudações, Nelson Rubens Kunze, diretor-editor

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Solidarizo-me com as resenhas e as opiniões de João Luiz Sampaio e de Irineu Franco Perpétuo. Gostaria ainda de ressaltar o belo trabalho da tradução, e muitas vezes adaptação, do libreto. Inteligente e perspicaz, sem perder a ideia original de Felice Romani. A montagem de "Os Capuletos e os Montéquios" do São Pedro tem tudo para se tornar uma das mais instigantes montagens de ópera feitas nos palcos paulistanos.

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