‘Cartas portuguesas’, de João Guilherme Ripper

por Nelson Rubens Kunze 11/11/2020

Cartas portuguesas, a nova ópera de João Guilherme Ripper, estreou em Lisboa na semana passada. Co-encomenda da Fundação Osesp com a Fundação Gulbenkian de Portugal, o título é um monodrama para soprano e orquestra e teve a sua primeira apresentação mundial em agosto, na Sala São Paulo.

A obra baseia-se em um livro do século XVII, que contém as cartas de amor da freira portuguesa Maria Alcoforado, apaixonada pelo oficial francês Noël. Ripper, que também é o autor do libreto, uniu as cartas a passagens da Bíblia e a textos do poeta barroco português Rodrigues Lobo. “As cartas falam de amor, melancolia, ódio, esperança. São temas recorrentes, que perpassam sua escrita. E eu senti a necessidade de incluir outros elementos para criar um sentido de evolução dramática para a narrativa”, ele contou à Revista CONCERTO na época da estreia.

No espetáculo, com uma entrega quase devocional, Maria Alcoforado expressa sua paixão e sofre pela impossibilidade de sua realização. O texto é puro drama emocional, sem dúvida muito apropriado para uma adaptação operística.

Ripper criou uma obra consistente, em que se desenvolvem de forma cada vez mais intensa os variados estados emocionais de Maria Alcoforado. Com inventividade e utilizando-se de uma linguagem de tonalismo expandido – que também explora ricos efeitos sonoros –, o compositor construiu o discurso musical em hábil conjunção com a narrativa. É um tom de melancolia devastadora que perpassa a história, Maria se sente só e abandonada. “É uma ópera sobre a clausura”, diz Ripper, que aponta a semelhança com a época de confinamento que vivemos com a pandemia hoje.

A encenação do espetáculo, tanto em São Paulo como em Lisboa, foi do diretor Jorge Takla, que partiu de uma ideia simples mas bastante funcional e adequada: uma plataforma sobre o palco, diante da orquestra, coberta de cartas manuscritas e, em um dos cantos, um manequim de vitrine com o uniforme de Noël. Na versão brasileira, ainda havia ao lado outra plataforma, com um campo verdejante e a miniatura de uma igreja – lembranças da infância de Maria. A cenografia foi de Nicolas Boni e Fábio Namatame cuidou dos figurinos. (O jovem pianista Rafael Andrade, que morreu inesperadamente na semana passada, fez aqui, como maestro assistente, um de seus últimos trabalhos.)

Assisti às duas apresentações, a da Osesp e a da Gulbenkian, on-line pela internet. E foram ambas muito boas.

Na Sala São Paulo, a Osesp demonstrou empenho sob ótima e segura direção do maestro Roberto Tibiriçá. O destaque foi a interpretação da soprano Camila Titinger, que, com sua já conhecida competência vocal, viveu o drama com grande arrebatamento.

Camila Titinger no monodrama ‘Cartas portuguesas’ apresentado pela Osesp (reprodução YouTube)
Camila Titinger na apresentação da Osesp (reprodução YouTube)

A estreia portuguesa foi protagonizada pela igualmente ótima soprano Carla Caramujo. Acompanhada pela orquestra do Gulbenkian sob a direção do maestro finlandês Hannu Lintu, Caramujo deu uma leitura interiorizada do drama, emocionante e intensa.

Carla Caramujo na apresentação do Gulbenkian (reprodução YouTube)
Carla Caramujo na apresentação do Gulbenkian (reprodução YouTube)

Cartas portuguesas é fruto de uma importante parceria da Fundação Osesp com a Fundação Calouste Gulbenkian, de Portugal, que consiste em encomendas musicais feitas alternadamente a compositores portugueses e brasileiros. Com a pandemia, a estreia na Sala São Paulo foi uma das poucas apresentações da Osesp mantidas conforme a temporada programada, ainda que sem público presencial. 

Entre formações maiores e de câmara, esta é a sétima ópera de Ripper, que, além de professor de composição na Escola de Música de UFRJ, também é presidente da Academia Brasileira de Música e diretor da Sala Cecília Meireles. Seu catálogo de obras abarca uma variada produção que inclui música sinfônica, música de câmara, música vocal, peças solos e óperas.

Com sua atividade criativa e de gestão, João Guilherme Ripper, 61 anos, é hoje seguramente uma das mais importantes personalidades clássicas em nosso país. 

[Clique aqui para assistir às Cartas portuguesas na interpretação da Osesp, Roberto Tibiriçá e Camila Titinger (a partir do minuto 55’)]
[Clique aqui para assistir às Cartas portuguesas na interpretação da Orquestra do Gulbenkian, Hannu Lintu e Carla Caramujo (a partir do minuto 22’)]

Cartas portuguesas
[Reprodução YouTube]

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