‘Don Giovanni’ no Theatro Municipal de São Paulo: na prática, a teoria é outra

por João Luiz Sampaio 08/05/2025

Ponto de partida estimulante da produção de Hugo Possolo esbarra em escolhas na condução do espetáculo

O personagem Don Juan já foi lido ao longo do tempo de diferentes formas – e o mesmo vale para ópera Don Giovanni, de Mozart e Da Ponte, uma de suas reinterpretações mais célebres. O conquistador que se recusa a pedir perdão ou arrepender-se encarnou o ideal iluminista de celebração do indivíduo e questionamento da moral e das convenções sociais. No Romantismo, representou a febre do ser humano na afirmação de suas vontades (o que pode ser desejável ou não, a depender do filósofo que se escolhe). A história já fez pensar sobre os poderes por trás da sedução. Goethe, por sua vez, falava do sobrenatural, dos fantasmas e da noite, como lugar de encontro entre o humano e o transcendente. O fim do século XIX deliciou-se na relação entre desejo e morte.

No século XX, tudo acabou se misturando, e, por isso mesmo, Don Giovanni foi assumindo o posto que E.T.A. Hoffmann já havia sugerido no início do período romântico, de “a ópera das óperas” (ouçam as Bodas de Fígaro de novo, por favor). Nas últimas décadas, no entanto, tornou-se difícil não olhar a obra também a partir da relação entre personagens masculinas e femininas. Celebrar como herói livre um homem que inicia a ópera tentando um estupro e tem como credo a objetificação da mulher – a quem engana sempre, sem escrúpulos, autorizado a tudo pela sua masculinidade tóxica – tornou-se problemático. 

Não é uma mudança qualquer. Se uma das grandes qualidades da ópera alardeadas ao longo do tempo é a capacidade da figura de Don Giovanni, como construída por compositor e libretista, revelar o mundo interior das mulheres à sua volta, agora podemos pensar como isso perpetua a ideia da vontade feminina como consequência do desejo masculino. E esse é apenas um dos pontos de inflexão a que uma leitura com esse foco pode levar.

É uma leitura tão importante e válida (e até mesmo necessária) quanto qualquer outra que a ópera já tenha recebido. E foi o ponto de partida escolhido para a produção que está em cartaz no Theatro Municipal de São Paulo, assinada por Hugo Possolo. A ópera se passa, ele explica, em um ambiente circense, com “elementos festivos e de espetacularidade que combinam com o espírito da criação de Mozart” e oferecem a figura do palhaço como alternativa à sisudez. Os recitativos secos, que interligam as cenas com os cantores acompanhados normalmente pelo cravo, foram alterados: perderam o acompanhamento e se tornaram diálogos falados (enquanto ao cravo restaram comentários musicais feitos a partir da citação de músicas do momento, de Annita a Wesley Safadão). 

Nos diálogos, Possolo soma ao texto de Da Ponte excertos do Don Juan de Molière e cria ele mesmo alguns acréscimos, a evidenciar do que pretende falar ao encenar a ópera. Um exemplo está na fala de Donna Anna a Don Ottavio, que passa a ópera zanzando ao seu lado e falando em vingar sua honra: ora, ela não precisa que um homem a vingue ou a defenda. “Sou eu que quero me vingar”, ela diz, completando que ele não é o protagonista de sua vida. Em um drama giocoso, Possolo fica com a comédia, às vezes se aproximando da farsa. 

As opções, como era de se esperar, despertaram a grita de parcela do público. Há naturalmente críticas a serem feitas (quando não há?) e gosto é gosto. A coisa complica quando se fala em defender o original de Mozart. Vale sempre lembrar o diretor e dramaturgo Peter Sellars: há certa incoerência em celebrar esses grandes autores como revolucionários e, hoje, tratar suas obras de forma cristalizada no tempo. Respeito não é o mesmo que idolatria – e, em arte, a diferença é particularmente importante. Além disso, Mozart é grandinho e sabe se defender. Não precisa se resignar enquanto revira no túmulo: pode, se assim quiser, voltar como estátua de pedra e envolver o diretor nas chamas do inferno.

E há, de resto, ecos entre a montagem e o tempo de Mozart. Emprestar trechos de Molière seria tão absurdo em uma ópera cujo próprio libreto tem passagens emprestadas (ah, os eufemismos) por Da Ponte da versão de Giovanni Bertati estreada pouco antes da de Mozart? Inserir passagens musicais da época na partitura o próprio Mozart fez, citando a si mesmo com pedacinhos das Bodas. E o conceito de uma obra fechada e imutável é, afinal, posterior às décadas finais do século XVIII em que Mozart escreve.

Tudo isso para dizer que o conceito de Hugo Possolo para Don Giovanni é estimulante. Mas transformá-lo em um discurso narrativo claro e fluente sobre o palco é outra história. A escolha dos trechos de Molière, por exemplo, surpreendem por raramente trazerem à história informações que já não estejam de alguma forma no texto de Da Ponte, se não nos recitativos, nas árias. Don Ottavio a certa altura condena o comportamento de Don Giovanni porque, se um homem honrado age daquela forma, o que isso diz a respeito dos demais homens honrados, como ele próprio? A similaridade entre os cinco personagens masculinos, e sua postura perante as mulheres, é um tema explorado não é de hoje – e, levando em consideração o espírito (e os ouvidos) de nossa época, torna-se ainda mais evidente, assim como o incômodo em ouvir Zerlina dizendo a Masetto que não há problema em bater nela, pois se comportou mal.

Cena da produção da ópera 'Don Giovanni' no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação/Larissa Paz]
Cena da produção da ópera 'Don Giovanni' no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação/Larissa Paz]

 

Fica a sensação de que teria sido melhor se Possolo apostasse nos seus próprios diálogos, o que levaria talvez a uma outra vantagem, uma maior concisão que impedisse que o espetáculo, em especial na primeira parte, ficasse tão arrastado. Recitativos não são uma idiossincrasia; existem por um motivo. Do ponto de vista dramático, são momentos, em Mozart em especial, nos quais a história anda para frente, em oposição ao tom reflexivo e interiorizado das árias ou da multiplicidade de visões que se unem nas cenas de conjunto. Musicalmente, dão à palavra tempo preciso, e ritmo à história. Substituí-las por diálogos não é o problema, mas, sim, fazê-lo sem se atentar à necessidade de, com as palavras, manter o sentido dramático que essas passagens têm. A ópera não é feita de arbitrariedades, não mais que qualquer outra forma de manifestação artística. Ela tem sua lógica interna. E mesmo para implodir um prédio é preciso conhecer suas fundações.

Os cantores nem sempre se mantiveram à vontade nessas cenas. A alteração pode ser bem sacada, mas não é banal. Um cantor não é um ator, o que não significa que não saiba atuar, mas sim que o faz de uma outra forma. Talvez fosse necessário mais tempo para que o elenco assimilasse a proposta, tornando-a natural. Mas o que podemos ver é o que está no palco – e, em alguns momentos, somou-se ao desconforto uma dificuldade de compreensão do texto. 

Mas foram muito bem os cantores. Ainda que se costume esperar um Giovanni barítono e um Leporello baixo, é verdade que existe uma longa tradição de inversão dos registros. Mas aqui, mais uma vez, na prática a teoria é outra. Duas vozes especiais – a de Hernan Iturralde e a de Michel de Souza – foram levadas a extremos de tessitura que nem sempre soaram naturais. No entanto, ambos, mas especialmente Souza, se mostraram musicalmente inteligentes, mozartianos atentos a nuances de estilo. É só uma pena que a mesma sutileza não tenha vindo da orquestra e da regência de Roberto Minczuk. Na récita de domingo, dia 4, no trio final, no qual Iturralde e Souza se uniram a Savio Sperandio, um excelente Comendador, simplesmente não se ouviu as vozes. É o ponto culminante da história, e uma das passagens mais inspiradas de Mozart, pela forma como equilibra as três vozes graves masculinas. O problema é que força e intensidade definitivamente não são a mesma coisa.

A mesma atenção ao estilo se ouviu nas demais vozes. O Don Ottavio de Anibal Mancini é de enorme elegância na construção das frases. Felipe Oliveira saiu-se muito bem como Masetto. Mas foi especialmente interessante ouvir o trabalho de Luisa Francesconi e Ludmilla Bauerfeldt (que substituiu Camila Provenzale, doente, no domingo). Francesconi ofereceu matizes que fizeram de Elvira uma personagem que vai além da caricatura da mulher traída obcecada por aquele que a traiu. Bauerfeldt, por sua vez, foi uma Donna Anna mais intensa, humana em uma urgência que não  estamos acostumados ouvir. E a Zerlina de Carla Cottini é irônica no modo como compreende não apenas a situação em que se encontra como aquela em que se inserem as demais personagens. Lembrou Susanna (ouçam as Bodas de Fígaro, por favor). 

No final das contas, é na atuação das três que o conceito da produção de fato se fecha. A releitura proposta por Possolo se concretiza, afinal, na dimensão que as três cantoras conseguem dar a seus papéis. Mérito do diretor, sim, mas também de três intérpretes maduras e inteligentes, que nos lembraram que muito do que se propôs a dizer, do ponto de vista teatral, já está na partitura de Mozart. Ópera tem mesmo dessas coisas.

[A produção de 'Don Giovanni' fica em cartaz no Theatro Municipal até o dia 10 de maio; veja mais detalhes no Roteiro do Site CONCERTO.]


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