Kurtág, 100 anos: música que encanta e inquieta

por João Marcos Coelho 22/12/2025

Disco reúne o barítono Benjamin Appl e o compositor para uma seleção de canções suas e de Schubert

O compositor húngaro Gyorgy Kurtág completa 100 anos no próximo dia 19 de fevereiro. E continua ativo. É o último sobrevivente de uma geração excepcional que inclui Boulez, Stockhausen e Nono. Ele foi aluno de Ligeti e, ao contrário de outros compositores que deixaram a União Soviética – caso de seu professor Ligeti –, Kurtág permaneceu na Hungria comunista.

Vários lançamentos estão programados para este fim de ano e o início de 2026. Mas quero começar estas comemorações com um álbum de 2025 que só pode ser qualificado como excepcional. É, acredito, uma das melhores portas de entrada para o universo muito particular da música de Kurtág, um compositor que passeia pela história da música e a utiliza como insumo de sua música sempre pessoal, inconfundível.

Lines of Life, linhas de vida, estabelece uma “conversa” musical entre Kurtág e Schubert. Ele acompanha ao piano o barítono Benjamin Appl. Na verdade, o compositor reveza ao piano com o pianista Pierre-Laurent Aimard. No repertório, suas canções dialogam com outras de Schubert e Brahms. 

Escolhi este álbum porque ele é o retrato mais completo do universo criativo de Kurtág. Ele adora realizar viagens maravilhosas e refinadas pela história da música. O pianista italiano Marino Formenti, que gravou um álbum com o compositor dez anos atrás, define com precisão o peso da História deixando traços em sua música, traços que também são nossos: “Os fantasmas de Kurtág são os grandes compositores do passado com os quais nós todos mantemos um vínculo muito forte”. Ele compôs mais de uma centena de miniaturas prestando tributo a compositores do passado, como Bach, Schubert, Schumann, Beethoven. E a criadores do século XX, como Webern, Bartók e Ligeti. Também a professores e amigos músicos, pessoas com as quais conviveu, foram objeto destas miniaturas.

Benjamin Appl teve seu primeiro contato com o compositor em 2019 e vem trabalhando com ele nos últimos anos. “Ele me moldou como músico e como ser humano mais do que talvez nenhuma outra pessoa em minha vida.” O álbum alterna lieder de Schubert e Brahms com as criações de Kurtág. Com direito a cinco primeiras gravações mundiais. E até com o próprio Kurtág ao piano, acompanhando Benjamin em um lied de Schubert e outro de Brahms.

Benjamin assina um excelente texto no encarte em que conta como foi a aventura de gravar o álbum: “Após vários ensaios, gravamos o álbum em doze dias inteiros de trabalho em estúdio e mais de 1.200 takes. Kurtág esteve presente em todas as sessões de gravação e atuou como produtor. Por isso decidimos incluir no álbum uma faixa final de quase 20 minutos com uma entrevista com Kurtág. Nossa ideia, minha e dos pianistas, é dar uma visão do universo infinito deste homem tímido e hesitante, autocrítico severo, pesquisador crítico, intelectual modesto, brilhante poeta dos sons, personalidade extraordinária”. E completa: “Ele reflete sua visão das obras dos séculos XIX, XX e XXI como se estivéssemos olhando para elas através das lentes do grande compositor contemporâneo. Até hoje, aos 99 anos, ele segue o ideal de um de seus mais caros modelos, Béla Bartók: permanecer fiel a si mesmo. Ele não escreve música para agradar ou ser amado. Só busca a verdade”.

Quando nasceu a ideia do álbum, e Benjamin conheceu Kurtág, ele ainda estava profundamente impactado pela morte de sua mulher e pianista Marta: surgia ali a ideia de reunir num recital os Hölderlin-Gesänge, canções de Hölderlin, e outras peças isoladas de Kurtág, com os lieder românticos que Marta mais amava.  Além de Aimard, participa outro pianista que também é muito próximo do compositor, James Baillieu.

O álbum está disponível nas plataformas de streaming. E sugiro a você não ouvir aleatoriamente uma ou outra faixa. O impacto é maior se respeitamos a ordem proposta por Kurtág. Afinal, é uma “viagem” musical extraordinária que só é plenamente entendida se nos juntarmos aos viajantes. As cinco primeiras canções constituem um exemplo notável: começa com Circumdederunt..., de Kurtág, sobre versículos dos salmos 17 e 114 apenas com a voz de Benjamin Appl. Na sequência, o conhecido lied Ganymed, de Schubert, com Appel e James Baillieu. E de repente  Appl novamente a cappella, canta em menos de 60 segundos estes amargos versos de Holderlin musicados por Kurtág: “Os prazeres deste mundo/ eu os aproveitei/as horas da juventude passaram há muito tempo/ abril e maio e julho estão longe/ não sou nada/ não tenho mais prazer em viver”. E, ainda impactado pela força destes versos, a quarta canção, assinada por Schubert sobre versos igualmente amargos de Jacob Nicolaus Craiger de Jachelutta duvida de nossa humanidade: “Ó humanidade, ó vida! Qual é o objetivo? qual é o sentido? Cave, enterre! Dia e noite sem descanso! Obsessão, atividade, onde? Ah, para onde? Na sepultura, na sepultura, bem lá no fundo!”.

Kurtág completa este “ciclo” carregado de pessimismo e sombras com um novo aforismo a cappella de apenas 29 segundos: o compositor adverte que “só compreendo o homem agora, que vivo longe dele e na solidão”. Entretanto, o passado pode nos alimentar de alguma esperança, com dois conhecidíssimo lieder de Schubert, Im Fruhling, Na Primavera, e Das sie hier gewesen, que começa assim: “Os perfumes do vento leste soprados pelos ares me contam que você esteve aqui”.

Ao todo, 22 faixas e 67 minutos que nos encantam e inquietam como só aventuras musicais de exceção são capazes de provocar em nossos ouvidos.

“Meu objetivo neste álbum”, escreve Benjamin Appl, “é dar aos ouvintes um vislumbre do universo infinito de György Kurtág: um procrastinador tímido, um autocrítico severo, um pesquisador hesitante, um questionador introvertido, um intelectual despretensioso, um compositor brilhante e um ser humano extraordinário”. Objetivo plenamente alcançado.

P.S.: Não deixe de ouvir com atenção o ciclo Hölderlin-Gesänge, de Kurtág. Compõe-se de seis canções, cinco delas a cappella, ou seja, para voz solo. Apenas uma, a terceira, intitulada Forma e Espírito, tem, além da voz, a participação de Csaba Bencze ao trombone e Gergely Lukács à tuba.

Benjamin Appl e Kurtág durante a gravação do álbum [Divulgação]
Benjamin Appl e Kurtág durante a gravação do álbum [Divulgação]

 

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