A música como arma de guerra cultural no século XXI

por João Marcos Coelho 27/12/2023

Em setembro, os Estados Unidos lançaram a “Iniciativa Global de Diplomacia Musical”, aproximadamente uma semana antes do início da guerra entre Israel e o Hamas no Oriente Médio. Ao que tudo indica, o governo norte-americano parece querer reeditar, ou ao menos tentar replicar, ajustando-se à realidade atual, a música como ferramenta de diplomacia cultural norte-americana no planeta.

Impactado pela notícia, fui conversar com a musicóloga norte-americana Carol A. Hess, professora de Musicologia da Universidade da California em Davis. Ela tem estudado, nas últimas décadas, a música na América Latina e suas relações com os Estados Unidos.

Há cerca de uma década, lançou um livro essencial, Representing the good neighbor (Editora da Universidade de Oxford), esmiuçando como os EUA usaram nosso continente como campo de testes para o uso das artes como abre-alas da difusão dos valores norte-americanos, não só culturais – sub-repticiamente também ideológicos. 

Em 2023, ela publicou outro livro, Aaron Copland in Latin America – Musical and Cultural Politics (Universidade de Illinois). É um recorte mais específico, sobre as viagens que o compositor norte-americano Aaron Copland fez entre 1941 e 1963, como funcionário do Departamento de Estado, garimpando compositores latino-americanos que deveriam receber tratamento especial: encomendas de obras, estreias nos EUA, etc. 

O Departamento de Estado dos Estados Unidos mencionou as turnês de Copland nos anos 1940 quando lançou a “Iniciativa Global de Diplomacia Musical”. Perguntei sobre isso a Carol. Abaixo, sua resposta surpreendentemente longa e minuciosa.

“Alguns contatos no Departamento de Estado disseram-me que muitas pessoas fora dos círculos da diplomacia cultural acreditam que esta prática começou com as turnês da era da Guerra Fria dos músicos de jazz Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Duke Ellington e outros. Aqueles contatos – e eu – ficamos contentes por ver as viagens de Copland mencionadas no anúncio desta nova iniciativa do Departamento de Estado."

"Não sei bem se esse programa ainda pode ser considerado uma solução (um remédio) – ou mesmo um programa. Pelo menos, por enquanto não. Na última vez que falei com alguém que trabalha em estreita colaboração com o Departamento de Estado, fiquei sabendo que vários funcionários estão à procura de financiamento privado para complementar os recursos existentes destinados à Iniciativa Global de Diplomacia Musical. Tal como nos primeiros dias da diplomacia cultural, prevê-se que a indústria musical faça parceria com o governo dos Estados Unidos. Desta vez, no entanto, estamos vendo mais ênfase na consolidação de relações musicais através de networking, orientação e formação para os participantes, independentemente do seu país de origem. Em outras palavras, não são apenas os Estados Unidos que andam pelo mundo a dizer aos outros países o que fazer. Outro objetivo é disponibilizar bolsas de estudo para académicos que pesquisam a intersecção entre artes e ciências."

Perguntei então a Carol se apenas será replicado o formato adotado durante o meio século de Guerra Fria, que transformou a cultura em um campo de batalha nem sempre soft entre EUA e URSS entre 1947 e 1989. Sua resposta:

"Certamente, em 2023, e por várias razões que não é preciso mencionar, a diplomacia cultural enfrenta desafios assustadores. No entanto, vale a pena salientar que a diplomacia cultural dos EUA tem muitas vezes andado com companheiros estranhos. Na década de 1940, um republicano rico, Nelson Rockefeller, foi nomeado pela administração democrata do presidente Franklin Delano Roosevelt como coordenador do Gabinete de Assuntos Interamericanos (OIAA), no qual a diplomacia cultural desempenhou um papel central. Na década de 1950, o senador anticomunista Joseph McCarthy, republicano, atacou repetidamente o Departamento de Estado por uma suposta infiltração comunista. E, como detalho no meu livro, ele perseguiu Copland. No entanto, o patrocinador de outro projeto de diplomacia cultural do Departamento de Estado, o programa Fulbright Scholarship and Fellowship, foi o senador norte-americano J. William Fulbright. Ele era um democrata do Estado sulista de Arkansas e tinha um passado político misto em matéria de segregação, mas opôs-se à caça às bruxas de McCarthy. A iniciativa anunciada em setembro passado foi patrocinada pelo deputado Michael McCaul, republicano do Texas, e pelos senadores Thom Tillis, republicano do Estado da Carolina do Norte, e Patrick Leahy, democrata do Estado de Vermont. Dado o clima atual em Washington, D.C., esta colaboração beira o fantástico."

"Não tenho como saber de que maneira os historiadores do futuro avaliarão as guerras atuais, que monopolizam a nossa atenção hoje em dia. Há quase cem anos, quando a diplomacia cultural patrocinada pelo governo dos Estados Unidos estava a ponto de ser lançada, muitas pessoas se perguntavam se todo aquele projeto seria algo mais que uma simples fachada. Desde então, a diplomacia cultural dos Estados Unidos tem sido criticada como propaganda de “lavagem de arte”. Esperava-se que aqueles músicos de jazz da década de 1950, muitos dos quais eram negros, deveriam sugerir que os Estados Unidos não eram uma nação racista. Este foi um argumento difícil de defender naquela era de segregação. E certamente a hipocrisia informou a diplomacia cultural, como no caso do governo dos Estados Unidos proclamando a solidariedade com a América Latina ao mesmo tempo em que apoiava regimes repressivos."

Carol conclui, corretamente, que as pessoas podem fazer a diferença. Como Copland entre 1941 e 1963, na América Latina. 

"Ainda assim, irrita um pouco ouvir uns e outros dizerem que tudo isto não passa de uma manobra imperialista. É verdade que o imperialismo orientou muitas decisões políticas lamentáveis. Mas é preciso lembrar que, no âmbito cultural, os laços afetivos foram forjados por indivíduos – por pessoas como Copland. Copland tratou com respeito os compositores que conheceu e foi sempre um grande defensor e bom amigo de muitos, e isso durante anos após o término das turnês pela América Latina. Não é possível medir os benefícios da diplomacia cultural em folhas de cálculo ou mediante análises de custo-benefício. No entanto, são benefícios profundos e, no caso de Copland, são lembrados com muito carinho até hoje."

O compositor Aaron Copland [Reprodução/WikimediaCommons]
O compositor Aaron Copland [Reprodução/WikimediaCommons]

 

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