Rua e realidade em Rameau

Iluminismo e pós-modernidade se encaram em montagem de Leonardo García-Alarcón e Bintou Dembélé para Les Indes Galantes, apresentada no Theatro Municipal de São Paulo

Les Indes Galantes, de Jean-Philipe Rameau, está localizada num ponto interessante de transição histórica. A obra articula a exuberância do barroco e o equilíbrio do classicismo, enquanto oferece, a partir de sua temática principal – o exótico – não só entretenimento para a aristocracia francesa do século XVIII, mas também um testemunho de uma certa curiosidade científica a respeito do Outro. O Iluminismo batia à porta com suas indagações. A aristocracia francesa que aplaudiu Les Indes Galantes seria decapitada, literalmente ou simbolicamente, não muito tempo depois da estreia, em 1735. A peça, por outro lado, sobrevive. E hoje é ela, e não somente sua própria temática, o objeto da curiosidade presente. 

Um subterfúgio da música de concerto tem sido revisitar obras antigas sob novas perspectivas, criando tensões, questionamentos, provocações. Inserções pós-modernas em formas consolidadas engendram resultados que podem ser satisfatórios ou não, a depender de um vetor importante: uma coisa é impor novidade ao antigo; outra é descobrir a novidade contida nesse antigo.

A beleza do Les Indes Galantes de Leonardo García-Alarcón e Bintou Dembélé está na maneira como a dupla soube extrair de dentro da obra algo que ela própria não sabia sobre si. Em vez de afogar a o ballet héroïque numa pós-modernidade desconcertante, optaram por interpretá-la. O resultado é inequívoco. Quase uma interpretação gouldiana da criação de Rameau.

Em primeiro lugar, é um espetáculo que privilegia a proporção e o equilíbrio, ideais caros ao Iluminismo. Vemos essa proporção na cena: o Capella Mediterranea, dividido em dois grupos opostos no fundo do palco, dialogava várias vezes com vozes vindas dos fundos e das laterais do Theatro Municipal de São Paulo. Escutar uma estereofonia (muitas vezes octofonia) barroca em equilíbrio cuidadoso, coordenado magistralmente por García-Alarcón, foi um privilégio. 

Músicos espalhados no espaço permitiam que Alarcón se movimentasse livremente pelo palco, ora regendo à esquerda, ora à direita, ora encarando o público – imagine agora os triângulos e círculos que sua performance desenhava no palco, e veja como a geometria é também objeto desse espetáculo. Descalço, ele juntou-se ao Choeur de Chambre e ao Coral Paulistano para cantar uma ode ao sol, durante a segunda entrada da obra (Les Incas du Peróu). 

Retirar os instrumentistas das profundezas do fosso não só borra a linha que divide solistas e orquestra, mas também, no contexto deste espetáculo, cria uma camada interessante. A meia-luz desenhada por Benjamin Nesme fazia pensar, talvez por causa da cor escolhida, nos salões franceses que, iluminados com velas, provavelmente também projetavam em suas paredes sombras como as que o público viu no Theatro Municipal. 

Mas não só a meia-luz contornava os artistas que, muitas vezes tocando de cor, também transitavam livremente pelo palco e pelos corredores da plateia, com cantores e dançarinos segurando bastões de led. Um círculo gigante de luz – parte do conceito lumínico, como García-Alarcón explica em entrevista à CONCERTO de novembro – encarna diversos papéis ao longo do espetáculo e completa o belíssimo desenho de Nesme.

Proporção e equilíbrio formam a base sobre a qual a intensidade própria do barroco pode se expressar. A densidade de formas – dança, música, cena, luz – faz confundir sobre quem atua em quê: ora cantores dançam, e ora dançarinos cantam. Sobrepostos no espaço, fazem o público girar as cabeças constantemente. Uma polifonia.

Acrescente-se agora a este salão francês octofônico um corpo negro, urbano e atual. Um grupo que, aos poucos, indaga com curiosidade os gestos contidos na música, procurando incorporá-los, apropriar-se deles. Gestos circulares (e o argumento geométrico torna-se completo aqui) em cânone representam a tradição oral, o ciclo, o sol e a natureza. Bintou Dembélé celebra a riqueza não apenas rítmica, mas gestual da obra de Rameau. 

Nesse sentido, a ária da segunda cena de Les Incas du Pérou, Vies Hymen, cantada por Laurène Paternò, foi o ponto alto do espetáculo como um todo – talvez até mais do que o “hit” Les Sauvages. Porque os gestos de sua melodia, acompanhada da flauta (ambos sentados no proscênio, como em um sarau) ganharam uma leitura única no solo de um dos dançarinos de Structure Rualité no centro do palco, numa cena sublime que é testemunho desse diálogo. Dembélé desloca Rameau bons 100 anos no tempo ao incorporar o gestual, e não apenas o representativo de sua música.

O ritmo marcado da Dança do Grande Cachimbo da Paz é sublinhado na coreografia de Dembélé, que incorpora o krump à música e libera o ruído dos passos de dança pela primeira vez de maneira contundente, manifesta, em sua coreografia. O que correria um risco enorme de cair num clichê contemporâneo resulta em outra coisa: é assombrosa a simbiose das duas camadas.

Com isso, Dembélé mostra a que veio: a perspectiva do colonizado, aqui, é generosa e não se vinga. Por outro lado, se apropria da obra, transformando-a sem violência contra obra, mas com o poder de uma nova consciência. Como ela diz no texto das notas de programa, “a raiva não teve escolha senão se transformar para encontrar uma linguagem que fosse perceptível no Mundo Inteiro”.

O resultado bem-acabado dessa montagem de Les Indes Galantes, alguns diriam, foi possível porque Dembélé respeitou a obra no que ela oferece e em seus limites. Mas talvez se trate mais de uma postura diante da obra. O nome de sua companhia de dança, Strucure Rualitè – nome que podemos traduzir livremente como Estrutura da Rualidade, misturando “rua” e “realidade” –, revela uma pista importante nesse sentido. Redefinir a estrutura da realidade – ou entender que essa estrutura é mais móvel do que pensavam Rameau e seus contemporâneos – é o que nos assombra. 

Les Indes Galantes de Leonardo García-Alarcón e Bintou Dembélé coloca frente a frente duas consciências: uma iluminista, outra pós-moderna. São dois períodos distantes que encontram um ponto comum: a tensão. O tempo à frente do autor do Tratado de Harmonia de 1722 não existia ainda. O tempo à nossa frente tampouco. O resultado da primeira transição já sabemos; o da segunda estamos vivendo. Acima disso, a arte continua a sublimar e colocar em linhas belas aquilo que ainda não temos vocabulário para responder por completo.

Cena da produção de 'Les Indes Galantes' no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação/Rafael Salvador]
Cena da produção de 'Les Indes Galantes' no Theatro Municipal de São Paulo [Divulgação/Rafael Salvador]

 

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