O olhar dos músicos 

por João Marcos Coelho 16/10/2023

Apesar de recheado de depoimentos dos músicos do Núcleo Hespérides que gravaram o álbum “Aylton Escobar – Música Brasileira Contemporânea”, lançado este mês, o artigo que escrevi para a edição impressa da Revista CONCERTO mostrou só a ponta do iceberg que foram estes depoimentos muito especiais – sobretudo quando comemoramos os 80 anos do compositor.

São nove obras que mapeiam o itinerário de Aylton como compositor entre 1967 e 2015 – portanto, um retrato muito significativo da obra de um dos mais importantes criadores musicais brasileiros da atualidade.

O projeto do álbum foi contemplado pelo PROAC de 2022 e vale a pena ressaltar como este mecanismo estadual tem funcionado tal qual uma usina de indução de aventuras musicais sempre muito desafiadoras, por causa de sua qualidade de invenção. E raras, porque, embora seu impacto imediato seja pequeno, este tipo de projeto integra uma pequena constelação de faróis apontando para a música de invenção de hoje e indica caminhos futuros.

O pequeno impacto direto no momento de sua concretização não deve ser fator de inibição. Ao contrário, são estes os projetos musicais que mais merecem apoio institucional. Nunca se escreve sobre o PROAC, mas é justo reconhecer que só assim conheceremos a música nova, em condições técnicas, artísticas e econômicas dignas. Seus mecanismos afastam o nepotismo, os conchavos e estabelecem uma postura de fato democrática.

Este álbum é um dos momentos mais virtuosos e essenciais da música do nosso tempo. E por isso mesmo coletei depoimentos dos músicos do Hésperides para compor meu artigo da CONCERTO deste mês.

Agora, aqui no Site CONCERTO, vocês podem ler estes depoimentos na íntegra. Preciosos escritos, porque testemunham o trabalho de construção de uma interpretação ao lado do próprio compositor, que atuou como diretor musical do projeto e acompanhou no estúdio a gravação de cada uma das nove obras. Vocês são sentir-se, como eu, privilegiados observadores de primeira mão deste processo. É mais ou menos como acontecia com Ignaz Schuppanzigh (1776-1830), o rotundo violinista líder do quarteto mantido pelo conde Razumowsky, mecenas de Beethoven. Ambos foram grandes amigos, beberam muito vinho juntos. Até piadas musicais Beethoven fez com o violinista. Ou, como o pianista Caio Pagano nos anos 1970/80, intérprete ideal de Gilberto Mendes e Willy Corrêa de Oliveira, almas gêmeas que impulsionaram a música nova.

Compositor e músicos do Hespérides se conhecem muito bem há décadas, convivem estreitamente com ele. 

Detalhe final: Aylton escolheu cada músico e cada obra. Um autorretrato ideal, portanto.
 

Fábio Cury sobre Cantares para Airton Barbosa

Meu primeiro contato com Cantares para Airton Barbosa se deu por volta de 2005, em algum evento acadêmico do Departamento de Música da USP, no qual se apresentou uma mostra de obras de compositores da casa. 

A estrutura da obra é muito clara, retratando o luto pela perda do fagotista Airton Barbosa, não só um grande talento do instrumento, mas também uma liderança muito importante na classe musical do Rio de Janeiro, fundador do Quinteto Villa-Lobos e um pioneiro do uso do fagote na música popular brasileira. Esse sentimento de pesar aparece ora mais resignado e com profunda tristeza, como é o caso do início, ora tremendamente indignado e furioso com esse falecimento tão injusto e precoce, como na parte central da peça. O final de Cantares revela um momento muito especial e de certa forma surpreendente, Aylton apresenta aqui a citação da Ciranda de Lia do Itamaracá, remetendo às origens pernambucanas de Airton Barbosa. 

Ainda que se possa compreender claramente a obra a partir de sua partitura e de sua estrutura, aquele primeiro contato com o compositor evidentemente formou a minha concepção da peça e tem influenciado todas as minhas performances, que foram muito numerosas, desde então. Naquela ocasião, Aylton fez um comentário que me deixou muito lisonjeado: “Você é um invasor de almas”, referindo-se àquela primeira performance. Muito provavelmente ele não se lembrará do elogio, mas eu não esquecerei jamais. 

Na gravação do álbum, nos encontramos diretamente no estúdio, não houve um trabalho prévio conjunto. Tocar sob a supervisão do compositor pode ser uma grande responsabilidade. No caso do Aylton, no entanto, foi antes um grande conforto por estar assistido por alguém que conhece profundamente a peça e, não só isso, que entende a arte da performance como ninguém.

A minha notável predileção por esta obra é patente e, somente em vista disso, eu já acharia que todas as homenagens ao Aylton nunca poderiam ser suficientes. Todavia, tive também recentemente o privilégio de ouvir o álbum inteiro em primeira mão e a qualidade é absolutamente estarrecedora, trata-se de um músico completo e genial. 

Maria José Carrasqueira sobre Assembly

Ter o Aylton no estúdio, literalmente ao meu lado, durante a gravação do Assembly, foi um compartilhamento de emoções muitas vezes incontidas. O olhar arguto, a escuta atenta e crítica, o gesto inaudito que sempre o acompanhou, a palavra sagaz, aguda, irônica, mas doce, onde o carinho do compositor que abraça, respeita e compartilha visceralmente a obra com o seu intérprete, sem concessões, fizeram desse momento único, de imersão na realização dessa composição, um encontro visceral com o grande  poeta, músico, artista, companheiro de viagem, que se coloca por inteiro quando compõe e espera a transcendência na realização da sua obra de arte. Momento de entrega e pura paixão pelo fazer musical. Emoção! Gratidão! Pura alegria!

Joaquim Zito Abreu

Conheço Aylton Escobar desde 1978, quando eu era aluno do Conservatório do Brooklin Paulista. Sempre foi um músico “fora da curva”, um grande artista. Participar como percussionista e como produtor assistente no Estúdio dos Lagos deste fantástico CD foi um grande privilégio. O Núcleo Hespérides gravou nove obras escolhidas uma a uma pelo nosso grande compositor, sua trajetória desde os anos 70 até hoje, interpretadas por seus intérpretes, cada um escolhido a dedo por Aylton Escobar. Cada intérprete foi responsável pela realização de sua obra gravando, acompanhando as mixagens e  masterizações, como desejo impresso nas obras de A. Escobar somos instigados a assinar nossas versões. Este projeto tem como objetivo deixar para futuras gerações gravações de referência para futuras interpretações.

Tenho plena consciência da grandeza deste projeto de resgate deste imenso compositor, um dos grandes de nosso continente ao longo da história. Há cerca de 10 anos gravei Vértebra com meus amigos do Hespérides, em nosso CD Sons das Américas, uma das melhores obras para soprano e percussão do repertório brasileiro e internacional. Naquela época, fiquei extremamente feliz em poder realizar um sonho em um ambiente extremamente hostil à música de câmara contemporânea brasileira. Hoje estou duplamente feliz, conseguimos realizar com muito esmero e qualidade artística este grande projeto. Tive a felicidade de poder tocar e gravar El Laud Y Las Brumas, de 2013, dedicada a mim e a Andrea Kaiser, obra-prima para soprano (nesta versão definitiva realizada brilhantemente por Laiana Oliveira), marimba, vibrafone, percussões gravadas e o violão oculto interpretado por Daniel Murray. Obra belíssima, escrita refinada e pura poesia sonora para nossos ouvidos. Viva nosso Aylton Escobar! A música contemporânea brasileira é impressionante.

Laiana Oliveira sobre El Laud y Las Brumas

O convite para cantar El Laud y Las Brumas chegou no mês de julho, e me senti tão honrada com a possibilidade de fazer parte dessa história, que aceitei imediatamente. Aylton Escobar é compositor de uma obra brilhante, sensível, genial; ele é um dos maiores compositores brasileiros de todos os tempos. Então, a possibilidade de trabalhar com ele e com os virtuoses que compõem o Núcleo Hespérides das Américas foi um presente da vida!

Costumo dizer que a experiência de cantar música contemporânea se dá da seguinte maneira: a primeira leitura – um processo solitário em que pensamos em solfejo, intervalos, texto; e a leitura em conjunto, que fornece uma nova perspectiva de relação entre todos esses elementos. Construir essa música com Joaquim Zito Abreu foi uma excelente experiência. Ele entendia a minha necessidade de construir minha paisagem musical mental, integrando os elementos presentes na percussão. 

Além disso, essa música oferece um desafio extra à cantora: o violão! No terceiro movimento, além da linha do canto, existe uma linha para violão em scordatura que EU deveria tocar! “Como assim? Eu só sei tocar três acordes”… Felizmente, pude contar a orientação supergentil de Daniel Murray, que participa da peça também com uma parte gravada de violão.

Olha só a minha sorte! Fazer música com Zito e Daniel é um privilégio imenso! 

E o compositor? No fim do primeiro ensaio, eu e Zito fizemos uma chamada de vídeo com Aylton Escobar, para mostrar como estava nossa leitura, e como foram as nossas escolhas dentro da abertura que a peça permite. Foi uma conversa inesquecível! Ele contou sobre o texto, sobre a preocupação na utilização de uma vocalidade inclinada para a emissão de música popular para priorizar a inteligibilidade do texto – esse detalhe demonstra como um excelente compositor se expressa em partitura: Aylton escreve a linha vocal utilizando predominantemente a região média da voz feminina, e ainda, escreve a parte da percussão proporcionando completo equilíbrio com essa emissão vocal, construindo um ambiente intimista que dialoga com o que o texto diz e com os silêncios, que ampliam o sentido do texto.

Além disso, Aylton falou sobre a importância de o intérprete “assinar” a obra, como parte dessa parceria estabelecida em performance. Assim, nossas vozes em conversas cotidianas foram integradas à parte eletrônica da peça e serão percebidas como essa assinatura. 

El Laud y Las Brumas é uma peça genial que tive a honra de conhecer e gravar, e que me proporcionou uma experiência linda de música de câmara e de contato com esse compositor incrível! Com certeza, um dos grandes acontecimentos da minha vida!

Intérpretes e compositor durante concerto de lançamento do disco em homenagem a Aylton Escobar, no Theatro São Pedro [Divulgação]
Intérpretes e compositor durante concerto de lançamento do disco em homenagem a Aylton Escobar, no Theatro São Pedro [Divulgação]

Renato Figueiredo sobre Movimento de sonata En el hondo silencio de la noche

Aylton Escobar iniciou seu brilhante trabalho pedagógico no Departamento de Música da ECA/USP em 1989. Nesse mesmo ano, ainda conseguindo mirar minha adolescência no retrovisor, lá também ingressei, como aluno.

“Laboratório de criação musical” foi a primeira das diversas disciplinas que me deram o privilégio de ser seu aluno, e foi ali, nas velhas instalações (em meio a tantas árvores), ao longo dos anos de meu aprendizado, que iniciamos nossa feliz amizade, relacionamento fértil em infindáveis reflexões sobre as artes, a cultura, a história da humanidade.

A passagem do tempo revelou afinidades e solidificou afetos.

Assim, tornou-se natural tocar (e, depois, também ensinar) sua música para piano e com piano. E igualmente natural passou a ser uma certa insistenciazinha para que ele compusesse mais para nosso instrumento comum. Suas elevadas autoexigências, entretanto, sempre o fizeram adiar projetos em branco e preto.

Mas felizmente aconteceu que, quando em um recital de 2013 (dias antes dos 70 anos dele) toquei seus Três pequenos trabalhos para piano, recebi uma alegre sinalização sua. Com delicada humildade, me disse algo mais ou menos assim: “Renato, quero retirar da gaveta uma sonata incompleta… antiga… que está lá em casa, ‘perdida’… ela tem mais de 40 anos… Talvez ali haja algo a ser aproveitado… Vamos examiná-la?” Que emoção! Que honra para mim! Que expectativa!

E daí, tendo-se passado 4 anos (!), na manhã ensolarada de um domingo, começando a primavera de 2017, quando paramos em frente a seu prédio no Itaim Bibi, estava no carro, comigo e minha esposa, a querida amiga Vera Silvia, viúva de Camargo Guarnieri, de quem Aylton gostava muito (e a conhecia desde a juventude, quando fora aluno de composição de Guarnieri).

Estávamos indo todos juntos a um compromisso, e Aylton já nos aguardava na portaria. Ao aproximar-se do carro, vi em suas mãos a partitura, disfarçadamente embrulhada. Abraçou-me e disse algo como: “Aqui está ela! ‘Ela’! A nossa sonata!”

Difícil descrever aqui o entusiasmo que me acometeu naquele momento, mas, o horário, ambos de pé na calçada e o carro mal estacionado, não nos permitiram, naqueles segundos, folhear qualquer página!

Dentro do carro, sagaz como sempre, Vera perguntou-nos do que se tratava e imediatamente lhe estendi a partitura: hoje guardamos a grata lembrança de que foram dessa saudosa amiga os primeiros olhos que contemplaram aquela magnífica obra de 1967, que Aylton deixara na gaveta por cinco décadas.

Exatamente um ano depois (setembro de 2018), em um concerto do Núcleo Hespérides, no qual celebrávamos os 75 anos de Escobar, tive a felicidade de fazer a primeira audição mundial dessa peça pujante, luminosa e, ao mesmo tempo, cheia de ramais delicados, de caminhos nostálgicos.

E, nessa mesma tarde comemorativa, tive a alegria de tocar a parte de piano de uma outra obra genial de Aylton Escobar: En el hondo silencio de la noche, para clarineta, violoncelo, piano e coro feminino, sob regência do próprio compositor (que, diga-se!, também é o poeta da obra).

Quando Rosana Civile convidou-me para tomar parte neste álbum que agora já acabamos de gravar, e contou-me que fora Aylton quem escolhera seus títulos e também os intérpretes (e que justamente aquelas duas maravilhosas obras tinham sido selecionadas por ele para estarem entre nossos registros), o júbilo que senti foi indescritível!

O novo projeto, então, intensificou nossas comunicações, para que pudéssemos discutir soluções interpretativas para essas obras; principalmente para a música de piano solo.

Nessas multifacetadas conversas, Aylton mudou o nome da peça para Movimento de sonata, de fato bem mais apropriado (e agora contendo um novo final, que ele compôs especialmente para este registro, e que encerra magistralmente a obra).

Dessa forma, em meio a um oceano de mensagens (escritas e faladas), e muitas vezes caindo na tentação das intermináveis digressões (que podiam ir da literatura à cosmologia, das vontades de entender de física à proteção dos animais) , nossas discussões foram de pródiga riqueza, principalmente porque seus conselhos interpretativos chegam a ser tão expandidos que, na verdade, para além de aplicarem-se às suas peças, espraiam-se por toda a expressão musical, instigando-me à incessante busca de uma comunicação interpretativa mais e mais ampliada.

Lidia Bazarian sobre Cantos novos e vazios

Cantos novos e vazios é uma peça arrojada, desafiadora e também arrebatadora! Escrita nos anos 70, trazendo sonoridades inusitadas e inovadoras no piano, através da técnica estendida e de uma escrita poderosa e expressiva no teclado. Poderosa também é a parte vocal, extremamente bem escrita, que flui, atravessa, contrasta com o piano, mas inesperadamente também se funde a ele. Uma experiência única gravar essa peça. Tanto para ultrapassar os desafios para a realização do conjunto em si, quanto para obter o requinte sonoro que o Aylton concebeu.

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